Nathan, o Sábio (Nathan der Weise, original de 1779) é provavelmente a obra dramatúrgica mais estudada durante todo o percurso escolar na Alemanha. Não apenas porque Gotthold Ephraim Lessing é um dos maiores expoentes do século das luzes alemão, mas pelo elogio a valores humanos universais que representa, tendo-se tornado um texto essencial naquele país após 1945. Faltava em Portugal uma tradução atual, situação que Yvette Centeno em boa hora reverteu, fazendo-a chegar a Rodrigo Francisco, diretor da Companhia de Teatro de Almada e encenador deste espetáculo, que considerou – e bem – que através desta história se poderia refletir sobre esse conceito tão escrutinado nos nossos dias: a tolerância.
À primeira vista, o texto baseia-se na diferença religiosa, e é por essa razão que a parábola dos anéis, relatada por Nathan e inspirada num conhecido momento do Decameron de Boccaccio, se tornou um símbolo inescapável da obra, visível igualmente nesta encenação, com uma pintura dos três anéis unidos a dar-nos as boas-vindas numa tela por trás do palco. No entanto, o enfoque no aspeto religioso parece-nos fazer depender o texto em demasia do seu referente temporal – Jerusalém no século XII – e menos na mensagem intemporal que dele emana. Até ao final do século XIX, terá sido inclusive comum eliminar a parábola dos anéis da encenação do texto, por exemplo pela mão de Schiller, sobretudo atendendo à sua excessiva dimensão na forma original. Não nos estranha que a metáfora medieval tivesse sido preterida, em favor da produtividade reflexiva que a história emaranhada de três formas culturais de estar no mundo conseguia proporcionar: Nathan (um judeu rico), que regressa a Jerusalém após uma viagem à Babilónia, descobre que a filha adotiva, Recha, fora salva de um incêndio por um cavaleiro templário (cristão), entretanto feito prisioneiro pelo governador da cidade, o Sultão Saladino (muçulmano), mas estranhamente absolvido por ele. Quanto mais cosmopolitismo é necessário para a pertinência de Nathan, O Sábio nos dias de hoje? Sobretudo perante os mistérios descobertos no final sobre a verdade biográfica de Recha, que é afinal uma cristã educada como judia por Nathan, com a cumplicidade de sua aia Daja. Uma judia que afinal é cristã, salva por um cristão inicialmente perturbado por ter salvado uma judia, que descobre ser sua irmã, deixada para trás pelas vicissitudes de um outro europeu perdido em solo sagrado no passado, e cuja ligação a Saladino se descobre no final: este é tio do próprio templário (e, portanto, também de Recha), daí reconhecer-lhe as feições desde o primeiro momento em que o vê, e por isso o libertara.
A complexa teia familiar desvendada no desenlace, de cunho propositadamente controverso, no conteúdo e na forma – não é cómico nem é trágico, tal como proposto na teoria da Hamburgische Dramaturgie de Lessing –, parece, segundo a receção da obra pós-1945, ofuscar-se perante o chavão da amizade entre religiões, preconizado pelo patético abraço coletivo com que culmina. Somos todos, os seres humanos, de facto, uma família, antes das pertenças culturais impostas por costume e política, e precisamente por isso perguntamo-nos o que ganha uma encenação desta obra em 2018, num mundo ocidental incontornavelmente globalizado, com uma caracterização das personagens segundo a referência meramente estética ao coletivo a que pertencem. Por outras palavras, ainda precisamos de um Saladino trajado segundo a convenção semiótica de um Aladdin de Walt Disney? Uma espada enquanto adereço cénico no texto dramatúrgico tem de existir literalmente nas mãos da personagem? Sittah só se entende enquanto víbora escondendo o rosto atrás de um véu? E Recha, vivendo na ignorância sobre a sua própria história, ainda tem de ser uma princesinha de contos de fadas, tonta, inocente, desprovida de qualquer densidade para além do vestido virginal e da voz gentil? Temos dúvidas, e é por isto e muito mais que a encenação de Rodrigo Francisco falha, a nosso ver, nos propósitos que a obra original foi supostamente chamada a cumprir (promessas verbalizadas pelo encenador em várias entrevistas e no próprio folheto do espetáculo). Não refletimos sobre os discursos que impedem a materialização da tolerância, não analisamos a linguagem enquanto arma de combate na guerra entre culturas, não nos é chamada a atenção para o facto de Nathan ser “o sábio” e não simplesmente “o rico”. Assistimos apenas a uma banal representação de um clássico, sem riscos, sem rasgo, sem desafio.
A opção por uma cenografia minimalista poderia ser frutífera. Um texto como este basta-se, sobretudo se puxar pela inteligência e criatividade do espectador. De resto, como Lessing entendia o papel do teatro, a quem Brecht haveria de ir buscar a inspiração: a empatia do público com o drama das personagens não pode esgotar-se durante o espetáculo, mas sim acompanhá-lo para fora da sala. A purificação catártica dá-se pela identificação com o dilema da personagem, não pela admiração. Mais povo, menos realeza. Um palco vazio, preenchido apenas com telas belíssimas de Pedro Calapez, única matéria digna de louvor neste espetáculo, aumenta exponencialmente a responsabilidade do encenador para operar a metamorfose do texto setecentista para o público atual, assim como a responsabilidade dos atores defenderem vigorosamente o drama psicológico da respetiva personagem.
Não tencionamos, obviamente, dar conta da nossa insatisfação sem sermos construtivos: porque não manter o único objeto presente em palco durante mais tempo, já que ele próprio espelha a configuração complexa familiar a ser desvendada de forma gradual no texto? A tábua de xadrez serve apenas como cenário para a conversa diabólica entre Saladino e Sittah? Como é possível desperdiçar o único adereço elaborado desta forma? E o traje de Daja, de proporções desmedidas? Não há consciência das circunstâncias externas à atuação, que vão claramente transportar uma atriz como Maria Rueff, a partir daquela caracterização, para o registo cómico ao qual a personagem não pertence tout court? Não entendemos. Como não entendemos o excessivo encurtamento do texto, a tal ponto que não chega a haver tempo para entrar verdadeiramente na atmosfera de mistério da história que ele vai desvendando. Já é pedir muito ao público que fique numa sala durante duas horas? É necessário um intervalo perante um texto tão reduzido? O encenador já parte do princípio de que o público vai penar perante o seu espetáculo?
Falta, ainda, referir especificamente a falta de convicção dos atores. Não recordamos um único momento de originalidade e cunho pessoal dado à intensidade de uma cena, seja por falta de competência básica corporal (pouca projeção de voz, movimentos corporais pouco assertivos), seja por não perceberem verdadeiramente que aspetos é que as suas personagens colocam em evidência, seja por dizerem o texto com um dramatismo excessivo, vetusto, que só um amador ainda acharia adequado, “debitando” linhas atrás de linhas de forma muitas vezes impercetível, e acabando por retirar toda e qualquer hipótese de fruição do peso das palavras que, num palco inerte, seria a única valência a que daríamos atenção.
Resta esperar que alguém com imaginação e criatividade, e com força para criar atuações verosímeis, coloque este texto em cima de um palco português com a dignidade que ele merece. Agradecemos o esforço e a vontade, mas se é para fazer assim, preferimos não ver.
Por defeito profissional, Luis Pimenta Lopes escreve de acordo com o novo desacordo ortográfico.
© Foto de Rui Carlos Mateusa
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