Netos de Gungunhana é uma peça surpreendente, desde logo pelo ambiente com que nos recebe no Teatro Municipal S. Luiz. Uma conferência em língua inglesa em que se juntam os descendentes do último imperador de Moçambique, filhos dos filhos das múltiplas esposas de Gungunhana. A abordagem à pluralidade dos tons do Português, espalhados pelo mundo com diferentes sonoridades mas léxico comum, diverte-nos e concede-nos algumas gargalhadas.
Depois, somos transportados através das almas para a narrativa do passado, da guerra, da imposição de uma civilização a outra, os baptismos, os sapatos e os talheres. “Uso este nome como o par de sapatos que me fazem calçar, serve-me mas não faz parte de mim”. Os talheres, símbolo da etiqueta, são armas, facas que se apontam e ferem. No cenário, como que por magia, desaparece a sólida mesa da conferência, em que se acotovelavam os netos oradores, e eis-nos no barco que transporta o Imperador, sete das suas mais de trezentas esposas e Zixaxa, chefe dos Mpfumos igualmente prisioneiro dos portugueses. Na guerra e no cárcere todos os homens se assemelham.
Baseada na trilogia Mulheres de Cinza, de Mia Couto, a peça não podia deixar de retratar a história dos vencidos, já que da saga dos vencedores reza a História. Gungunhana nunca é o assunto principal, porque é o presente e não o passado que aqui é focado. Na perspectiva europeia, o passado está morto, há uma barreira intransponível entre vivos e mortos. Já na cultura africana, os mortos apenas convivem de forma diferente com os vivos, e esta simultaneidade é transposta para o palco a viva voz.
O corpo de actores interpreta com naturalidade uma peça fisicamente exigente, num cenário quase nu mas que, ainda assim, consegue criar uma atmosfera mágica, metamorfoseando-se em brancos e negros, em idiomas e sotaques, em que tudo lhes é permitido e exigido. Como sempre o menos é mais! Sobretudo a voz de Té Macedo, notável, imprimindo dramatismo e doçura – água, ouve-se como mantra de fundo.
Paralelamente, talvez mesmo prioritariamente, é narrada a história de amor entre Imani e o soldado português Germano. A Imani arrancam o filho e a capacidade de falar o português. Destituída da sua identidade, das suas raízes e do homem que amara, recusa assumir-se como esposa de Gungunhana, com quem aceitara casar-se apenas para o matar. “Converta em água toda a gota de tinta. Quero-me vazia.” É contra este desespero da desistência, contra a forma insidiosa que assume toda a colonização, que Mia Couto se insurge. O Grupo de Teatro o Bando fala-nos em silêncio de uma outra luta: contra o preconceito e a xenofobia.
Do São Luíz, para além de um bom espectáculo de teatro, trazemos a vontade de revisitar as palavras de mel de Mia Couto.
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Foto © Estelle Valente