Niketche: Uma História de Poligamia (2002), romance de maior fôlego (talvez exagerado e labiríntico fôlego) da autora moçambicana Paulina Chiziane (n. 1955, Prémio Camões em 2021), é um convite para cavalgarmos, através das palavras duras, pelos espinhos da morte, pelos desertos amorosos, os invernos de uma sororidade esquecida a norte e sul daquele país africano. São mapeados conflitos entre tradições religiosas, entre etnias macua e maconde. A autora mostra-nos onde fica o sul, onde as mulheres são “violadas e espancadas” e o norte, onde são “acarinhadas” e centro da decisão familiar. Chiziane desvela a complexidade cultural em que se vê entalada a mulher de Moçambique e destapa a pressão a que os seus corpos estão subjugados, descrevendo a busca intensa dos homens por “mamas duras, traseiros lisos” e como são ignoradas as mulheres com “pernas com celulites como couve-flor”. Podemos vislumbrar uma visão degradante da condição feminina que, apesar de silenciada, castigada e desrespeitada, insiste em manter-se ao lado do homem, aceitando as imposições do sistema cultural e social, até ao fim, à “hora fatal, quando o caixão desce às goelas da terra, essa pescadora de corpos”. E há imagens que não precisam de mil palavras, basta ler “as mulheres a pilar, cantar e sorrir enquanto os homens bebem e conversam por baixo das mangueiras” para sermos transportados para aquele ambiente africano. Paulina usa metáforas que obrigam a nossa língua portuguesa a reluzir, afinal língua tão ampla, o diamante da lusofonia. Uma gentileza oferecida ao longo de trezentas e cinquenta e cinco páginas para nos explicar como (não) funciona esta filosofia complexa do amor partilhado. Envolve-nos por um fio páginas adentro, por linhas numa intricada tapeçaria de amor e sexo, jogos de ofensas e emoções. Sem cair no sentimentalismo, maneja uma intensidade poética assinalável: “Ele dá-me um beijo pequeno. Um beijinho suave e incendeia-me toda com sua chama.”
Amor entre homem e mulheres, mas também para se partilharem homens entre as mulheres que antes partilhavam apenas um homem. Confusos? Antes de mais, deve explicar-se ao leitor europeu que esta é uma aula magistral sobre outras formas de organizar os sentimentos. Uma história para desafiar, para expandir os limites dos nossos horizontes aprendidos e repensar a anatomia do amor. Sim, o amor pode ser comunhão e solidariedade, um gesto tão complexo como funcional que vai além das fronteiras da monogamia. Descobrir como pode o amor ser massa que abraça todos os corpos e fermenta devagar dentro da comunidade solidária entre irmãs e irmãos e um povo inteiro a dançar à volta dum forno de prazer, a tchingar um desejo que até queima, a brincar com o lume que esculpe a massa-mãe: o poder, os corpos, o dinheiro, a família, a religião e a classe. A classe da dama, Rami, e do vagabundo, Tony. E depois da primeira dama, a segunda dama, a terceira, a quarta e a quinta até já não haver mais camas disponíveis para susterem o inferno dentro do vigoroso capitão da polícia. Tony é o homem que faz parte dos “espíritos devoradores dos polígamos”. A fonte principal, de onde jorra o sémen que se espalha entre lençóis e as mamas de Rami, Julieta, Luísa, Saly e Mauá, de onde brotam as notas e os acordes de violências e a trama. Mas Tony é o homem que afinal se trama, o homem que prova o veneno que o engordou uma vida inteira. Tony que ama, chicoteia, tem certezas absolutas sobre as mulheres e ensina como uma menina da esquina se pode tornar num objecto lá de casa, como deve “servir de joelhos”, uma puta paciente e mais umas quantas posições óptimas para fazer crescer nódoas negras. Algumas destas mulheres sujeitam-se a “esmolas amorosas” e procuram no fogo sexual do homem uma forma de validação. Outras percebem que o capitalismo pode ser seu aliado para uma independência financeira que obrigue Tony a lamentar: “Ontem, vendedeiras de esquina, eram submissas e me adoravam. Hoje, empresárias, já não me respeitam.” Há, no meio destas páginas, tanta dor pronta para ser percebida por qualquer humano vivo e que tenha nascido de um ventre feminino. Aqui estão as mulheres com as nódoas negras invisíveis, sem voz para gritar, sem força para correr. Então elas sofrem para dentro deste livro, vão derramando litros de sangue para os nossos ouvidos de leitor, compondo uma sinfonia de humilhações.
Rami, a narradora, mulher forte, percebe e ensina-nos que não há apenas uma forma para amar, mas amores vários para sobreviver. Poligamia é assim amor errático e matemático, serve para somar, multiplicar, dividir, diminuir e que, ironia das ironias, está na moda pelos cadernos urbano-depressivos do vasto ocidente. Em voga entre esses mesmos corpos europeus, que a narradora caracteriza como amores frios, distantes, técnicos que apenas se preocupam com “o beijo na boca”, ao contrário dos furiosos corpos negros que aprendem desde cedo como oferecer prazer numa faísca. Niketche é dança para consumir homens, mas também o título desta narrativa que coloca Rami a falar com o “espelho, espelho meu” onde se reflectem tradição e mulher num só corpo de culpas. Esta personagem sabe muito sobre “palavrentos”, e ouvimos Mia Couto a sussurrar-nos qualquer coisa ao ouvido. Depois, Paulina Chiziane traz essas imagens solitárias por um braço até ao salão da Grande Literatura, onde estão os restantes escritores africanos, e onde nós, leitores, às voltas (no livro, nos continentes, nas possibilidades) aprendemos a escutar. Aprendamos o organograma da poligamia, a orgia dos machismos, o esquema para conservar o poder nas mãos do homem, aprendamos como se desenrolam as páginas da história moçambicana, carregada de dor por dentro e por fora destes corpos femininos e como tudo isso se equilibra. Aprendamos como a história se repete sempre que o homem chega a casa para jantar. Mas daí, desse ventre onde se fertilizam invisibilidades várias, ainda é possível a mulher subverter as regras de um jogo viciado pelos reis. Como? Rami, conhecedora do peso de uma história que sempre a relegou para um papel secundário, assume-o confortável e, vira o tabuleiro, distrai o oponente e mistura os papéis dos peões, bispos, junta-se às torres, avança e reinventa as regras, confunde movimentos, cavalga (con)tradições, joga com os dados da vergonha e do inesperado. Rami, a anti-heroína, afinal vence porque aprendeu a aceitar-se como rainha das derrotas, mulher africana.
Mais livros AQUI