Deste romance de estreia de Ottessa Moshfegh se poderia dizer que tem tudo para falhar. Tem tudo, mas não há nada nele que confirme esse vaticínio de catástrofe. Porque se salva da asfixia causada por uma primeira pessoa sufocante, um enredo concentracionário encurralado pela mágoa, castigado pelo ressentimento, consumido por uma raiva que poderia escaqueirar tudo. A narradora, que só a escassas páginas do fim perceberemos por que razão era Eileen, tem, também ela, tudo para deitar a perder todos os esforços do romance. Mas estes não serão baldados – pelo contrário. Presa a narradora numa adolescência a destempo, porque já tem 24 anos – «devia parecer uma rapariga de dezanove anos prestes a fazer sessenta e cinco» (p.35) –, nunca chegaremos a ter muitas certezas quanto à excentricidade etária em que se arrasta, àquilo a que a própria chamará a sua «inadaptação à puberdade – ainda aos vinte e quatro anos – que me deixava envergonhada da minha feminilidade» (p.94). Ficaremos sem saber se o é por um prolongamento da idade que se recusa a abandonar, ou se nunca a teve em tempo útil, e só no ponto em que a apanhamos a pode plenamente viver – ainda que apenas em pensamento, sublinhe-se. Porque Eileen Dunlop é inadequada onde quer que esteja, vá aonde for. Morta a mãe, vive com um pai alcoólico, negligente, que subsiste num estupor alienado cuja crueldade só se percebe, em toda a sua dimensão, com o decurso do tempo narrativo. Porque a narradora se dá tempo, e a autora arquitecta os tempos do romance com uma paciência inimaginável.
O Meu Nome Era Eileen é um romance a dois tempos. Entre eles, cava-se um fundo hiato temporal que separa irremediavelmente presente da narrativa e presente da narradora – «isto passou-se há cinquenta anos» (p.8). E este é outro dos componentes que poderia ter constituído um severo entrave ao andamento e à firmeza da ficção. Porque Moshfegh correu, com essa arrojada opção, enormes riscos de transformar o romance num estirado relambório penitente. No entanto, a autora está imune a essa espécie de síndroma de eu-bem-te-disse, que faria de O Meu Nome um romance de um pietismo serôdio. Pelo contrário: nem indulgente, nem recriminatório, o romance é um monólogo tenso e desapiedado em que o passado se revê de uma perspectiva amoral e isenta, em que arrependimento e redenção não têm qualquer lugar.
O auto-retrato – que, no fundo, todo este romance é – começa derrotista, autodestrutivo, num modo disfórico que mais não fará que tornar-se um timbre constante – «a minha tez pálida. Eu era esguia, a minha silhueta recortada, os meus movimentos acentuados e hesitantes, a minha postura rígida. Tinha a pela da cara pontilhada por macia e ressonantes cicatrizes de acne que manchavam o júbilo ou a demência que se escondia debaixo daquele exterior frio e fatal» (p.7). São incontáveis as descrições derrogatórias que de si mesma a narradora faz – «Eu era terrivelmente encarniçada e frígida, antipática. Ou melhor, era tensa e enérgica, bisonha e áspera.» (p.29); «eu era preguiçosa e tímida» (p.59); «Olhei-me ao espelho. Vi lá reflectido um rosto chupado e macilento. Parecia uma velha, um cadáver, um morto-vivo.» (p.212) A sua autodepreciação estende-se, inclusivamente, aos cenários de fantasia que engendra na sua mente cansada e consumida – «Imaginei-me a abraçar o director no seu gabinete, atirando-me a ele como uma boneca de trapos.» (p.97) Em todos esses passos cíclicos e obsessivos, entretanto, não será de mais repetir que as guardas nunca hão-de cair, e tudo decorrerá com armas prontas para o combate. A complacência nunca virá acolher-se nestas paragens. Eileen compraz-se mesmo na autópsia que vai fazendo ao seu próprio corpo, cápsula escassa e negligenciada, malnutrida com um sortido bizarro de alimentos colhidos ao acaso, como amendoins, leite, ou pão seco. Tudo embebido em doses mais que generosas de álcool e empurrado com comprimidos. O seu quarto é o prolongamento de uma casa delapidada, sem aquecimento no agreste Inverno da Nova Inglaterra: a narradora dorme numa cama de campanha comprada pelo pai para uma viagem de Verão que nunca se realizou. Um pormenor doméstico que introduz uma noção de precariedade e de inconclusão que se repercutirá ao longo de todo o romance. Nada, realmente, se chegará a cumprir, a realizar-se. Mesmo a fantasia em que imagina a fuga dessa sinistra X-ville, em que reside, não será a realização de um sonho, mas a fuga a um crime que queremos crer inevitável. Entretanto, toda a realidade de Eileen é a sua própria estranheza em face de si. A sua genitália é «um país desconhecido» (p.15); vive absorta num permanente estado de «alienação fleumática» (p.26). Resumindo a sua condição, como tantas vezes fará, há-de afirmar, como se escrevesse num diário em que verdade e consequência não fossem objecto de escolha: «A cantiga mais bonita que jamais ouvira era o silêncio da casa durante a noite» (p.145). É a própria, todavia, quem acende o alerta à flor da narração – «esta história não versa sobre quanto o meu pai era detestável» (p.12) – interrompendo-a, não como quem comentasse, ironicamente, caprichos da metaliteratura, mas como quem pretendesse limpar o texto de excrescências, desnecessidades. Eileen é, sobretudo, uma observadora. Dos outros e de si. Com a sua indumentária incaracterística, espécie de camuflagem para se fundir com o cenário, passaria perfeitamente, segundo o seu próprio diagnóstico, por «personagem secundária desta saga» (p.13). Fantasista e fantasmática, abandona-se com a mesma entrega a espiar um colega apetecível (e a conceber cenários sexuais) e a increpar mentalmente aqueles por quem sente desprezo. A imagem da vida desta administrativa a prestar serviço numa instituição prisional para jovens infractores consiste numa «longa sentença à espera de que o tempo passasse» (p.14). A vida burocrática e estupidificante, em que os pais dos detidos preenchem inúteis inquéritos logo remetidos ao lixo, conduz a narradora à mais amargas reflexões: «Se tivesse nascido rapaz, provavelmente teria acabado lá.» (p.177)
Em vez de se concentrar no período da sua vida em que viveu mais, em que mais acontecimentos decorreram, a narradora fixa-se nos seus minimalistas 24 anos, quase falhos de acidentes. Concentrada numa quase microscopia, detém-se a relembrar o suor de Randy, objecto das suas fantasias no trabalho – «cítrico como o oceano, musculado, cálido» (p.36) –, ou imagina as mais inviáveis associações para explicar o inexplicável – «É engraçado como o amor consegue saltar de uma pessoa para outra como se fosse uma pulga.» (p.37) Mas talvez não se trate aqui de uma deriva desinformada e juvenil. Especialmente se nos lembrarmos do poema «A Pulga», de Donne: «Observa esta pulga, e repara nisto –/ Quão pouco é o que me recusas –:/ A mim sugou primeiro e agora suga-te a ti,/ E nesta pulga nossos dois sangues se misturam.» (Poemas Eróticos, John Donne, trad. Helena Barbas, Assírio & Alvim 1998). De um modo em tudo análogo, ao lermos esta reflexão de Eileen «Não há nada que eu despreze mais do que homens com infâncias felizes.» (p.107), é difícil não pensar na famosa frase de Hemingway segundo a qual o melhor treino para um escritor é uma infância infeliz. No fundo, o que, obliquamente, Eileen defende.
As estalactites de gelo nos beirais são uma das imagens de referência no romance. O facto de O Meu Nome Era Eileen decorrer em pleno Inverno é importante, e estas formações de gelo, no seu poder ameaçador, agem como espada de Dâmocles permanentemente sobre a cabeça destes seres em ruptura e decadência. De tal forma assim é que uma dessas «gotejantes adagas» (p.182) irá mesmo cair sobre o rosto de Eileen, como se cravasse na sua pele a fronteira divisória entre uma e outra vida. Já depois de decidida a sair, finalmente, de X-ville, sucede o que a imaginação da narradora antecipara tantas vezes, quer em relação a si própria, quer aos outros – «uma daquelas estalactites partiu-se e acertou-me na cara, cortando-me como uma lâmina afiada desde o olho até ao maxilar» (p.260)
O sentido de desadequação que percorre todo o romance e que preenche a psique e o corpo de Eileen avança em crescendo. Mesmo quando a narrativa parece criar um contraciclo, com o envolvimento nascente com a colega recém-chegada, Rebecca, tudo se encaminha, afinal, para uma voragem que nada parece capaz de evitar. Narrando a partir da velhice, nem aí Eileen está apaziguada, nem crente em qualquer remissão – «À noite, a minha cama está repleta de amor porque estou sozinha nela.» (p.256). E Rebecca? Manipuladora exímia, refinada cínica, vítima de acasos atrozes? A nova colega permanecerá, em parte, um mistério insolúvel. E não será o autor destas linhas quem vá tentar desvendá-lo. Porque fazê-lo seria desafazer o que o romance enovela com tanta arte. A escassos passos de terminar, O Meu Nome giza um volte-face que abala as poucas certezas que a acerada narrativa se atrevera a erguer. O crime que sobrevém, precipita a fuga, torna-a menos o fruto do tédio do que a urgência do delito –«Disse às pessoas que me chamava Lena. E mudei mesmo o apelido quando me casei nessa Primavera. Essa é uma das vantagens do casamento. A mulher torna-se outra pessoa.» (p.261) Eis porque o seu nome era Eileen. O crime a que, no fim de tanto escavar, se chegou, obrigou Eileen a fugir, a mudar de nome, a ser outra pessoa, depois de nunca ter sabido que pessoa era por aqueles anos espinhosos da entrada na idade adulta.
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