…e ao terceiro dia, o NOS Primavera Sound viu a chuva inspirar Nick Cave à superação, elevando o que seria à partida um concerto óptimo, à dimensão épica de um evento inesquecível para milhares de almas sedentas de música e abrigo.
Com uma chuva que teimava em não parar, entre a clássica “morrinha” da Invicta e o chuveiro que pedia guarda-chuva, o concerto do ano começou devagar, com um som de palco anormalmente baixo, exigindo atenção indivisa e total às letras e acordes. Com este simples expediente, Cave tinha, desde cedo, milhares em silêncio, à espera da faúlha que finalmente inflamasse a modorra que se instalara, depois das corridas húmidas e inglórias entre palcos. Após dois temas do mais recente álbum (Skeleton Tree, 2016), soturnos e fechados, tudo mudou. Cave é reconhecido como um dos grandes animais de palco por uma razão muito simples (de identificar, não de emular): a capacidade de “ler” o público que tem diante de si e dar o litro, proporcionando-lhe momentos para memória futura. Toda a actuação, planeada ou não, foi uma lição de talento e generosidade, com Cave ensopado à chuva, sempre em contacto físico, visual e vocal com as primeiras filas, respondendo com actos (e não com os banais agradecimentos e elogios não solicitados) ao respeito e admiração daqueles olhos a palmos de si, algo que não vimos em nenhum dos rappers que encabeçaram o cartaz do NOS Primavera Sound 2018. Actuar à sombra da fama granjeada é receita que raras vezes traz bons frutos, e o instinto apurado de Cave funcionou na perfeição. O que se seguiu, até à despedida com “Push the sky away”, pede um chorrilho de alusões bíblicas a roçar o épico, ou sinónimos de padre, xamã e afins, colados com cuspo a referências Pop para efeitos pseudo-intelectuais e decorativos. Poupamos-vos esse desperdício de tempo e palavra, para vos falar do assombro que foi constatar que, quando o acaso o permite e quem sabe dá um empurrão, se criam instantes que salvam vidas. Ou talvez apenas uma noite.
Cave agarrou o público porque lhe deu o que ele queria (sem saber): empatia (passou o concerto à chuva, junto do público) e emoção a jorros, na forma de um alinhamento carregado de êxitos, como uma “Stagger Lee” em que o jogo de intensidades da interpretação acompanhava as variações no poder da chuva (ou terá sido o inverso?), “From her to eternity” desapaixonada e brutal, “Jubilee Street” a abraçar a velocidade do som mesmo no final, “Into my arms” só a voz e piano, com o público a garantir a multiplicação da carta de amor por mais de 30 mil, os lamentos de “Weeping Song” feitos redenção e “Tupelo“ a escancarar de espanto as bocas dos mais incautos, com o controlo total do anfiteatro natural, onde toda a imprevisibilidade intrínseca à circunstância, noutras mãos, seria sinónimo de fracasso.
Com os Bad Seeds, Cave encontrou o ponto óptimo entre a perfeição musical e o puro entretenimento, não como algo mecânico ou artificial, saído de uma sala de ensaios para maximizar resultados, mas com a liberdade de improviso e movimentos que só os grandes sabem aproveitar. A nós, que tentamos recriar ambientes, resta-nos esta (tentativa de) evocação de um concerto especial pelo todo público/banda que urdiu, em que noções como fã ou conhecedor foram irrelevantes, perante a ubiquidade dos sentimentos e do respeito mútuo, da gigantesca corrente eléctrica que atravessou os presentes, que espantou, para depois apaziguar e gerar o prazer que fabrica memórias.
Mas nem só de Cave se fez o último dia de NOS Primavera Sound. Na mesma noite, tivemos o grato prazer de ver os War on Drugs mostrar o seu A Deeper Understanding, num espectáculo em que algumas largas centenas de festivaleiros resistiram à intempérie para aclamar um dos colectivos mais aliciantes da actualidade, com os seus solos quase místicos e a voz dylanesca do seu vocalista.
Nils Frahm trouxe a sua parafernália, híbrido entre o orgânico e o electrónico, para um concerto muito para além dos dj sets que povoaram o restante alinhamento, criando loops in loco, prontamente casados com a melodia perfeita para a ressaca do concerto de Cave. Uma construção bela e surpreendente e uma discografia única que urge descobrir ou recordar.
Antes de tudo isto, os Public Service Broadcasting mostraram toda a sua perícia instrumental e bom gosto com um espectáculo audiovisual planeado ao detalhe e sem falhas, com direito a coreografias e talento a rodos. Ainda melhores que nos registos de estúdio, foram prejudicados pelas condições climatéricas, que afastaram algum público para outras paragens mais protegidas.
Em jeito de balanço, segundo dados da organização, encontramos um festival que cresceu (atingindo a marca dos 100 mil espectadores) e um cartaz criado para agradar a gregos e troianos. Boas notícias para a viabilidade financeira do festival, cuja edição de 2019 já está garantida, para os dias 6 a 8 de Junho. Noticias preocupantes para quem, já este ano, viu alguns erros de casting num cartaz sem fio condutor, indícios de possíveis mudanças que podem descaracterizar um evento que, desde o início, priveligia a descoberta e a celebração da música nova e desafiante sobre a artificialidade dos fenómenos mediáticos e dos acessórios e memorabilia. Variedade e novidade não podem nunca ser sinónimo de dispersão e incoerência, sob pena de sacrificar uma identidade forte construída com classe e cuidado.
Em 2019 tiramos a prova dos 8 (anos de existência). Que o deus do Rock vos acompanhe de volta à vida real. Ámen.
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