home Antologia, LITERATURA Nova Teoria do Pecado – Miguel Real (D. Quixote)

Nova Teoria do Pecado – Miguel Real (D. Quixote)

A escrita sobre Filosofia ou, como no caso deste Nova Teoria do Pecado (D. Quixote, 2017), eminentemente filosófica, é uma raridade nos escaparates das livrarias e nas estantes dos lares portugueses.

Miguel Real teve a felicidade de encontrar na D. Quixote o perfeito veículo para a divulgação da sua escrita e, paulatinamente, vem reunindo uma interessante e rara colecção de pequenos livros sobre grandes temas (como o Mal ou a Felicidade), sempre com a atenção directa ou indirectamente dirigida à portugalidade (o Sebastianismo é outro dos temas de um dos fascículos da colecção).

Nova Teoria do Pecado, com edição de Maria do Rosário Pedreira, é um estudo cuidado e assertivo acerca da evolução deste conceito, tão central à cultura ocidental, ao longo da história da Humanidade, estendendo-o desde a época em que o Homem era mero hominídeo até à actualidade.

Com múltiplas referências teóricas e bibliográficas, embora sempre convergentes e complementares, consegue a proeza de manter um texto dissertativo fluído, pontuado com as iterações essenciais para reforçar a centralidade de uma ideia ou raciocínio.

Desassombradamente e de modo metódico, por articulados formando silogismos clássicos, as premissas e conclusões sucedem-se ao longo do cativante e necessariamente condensado percurso teórico, social e filosófico, desembocando no conceito de Pecado hoje tido por universalmente aceite.

O cerne da argumentação é o tríptico constituído pelo Pecado, o Medo e a Culpa, as suas derivações e as consequências da sua interacção ao longo dos séculos, com especial enfoque na invenção do conceito de Pecado pela Igreja, sedimentado no pináculo do seu poder, até à progressiva descristianização, iniciada no século XIX, para hoje ser parte do que Miguel Real chama “Intervalo Civilizacional”.

Neste zeitgeist, os “termos morais” (como honra, virtude, penitência ou sacrifício) perderam muito do sentido e peso de que haviam sido dotados aquando da sua apropriação pela Igreja, em detrimento da chamada “qualidade de vida”, conjunto de “actos de prazer e conforto” que constituem a base aspiracional da existência contemporânea.

O Bem e o Mal são aferidos pelo excesso e pela perfídia com que são praticados os actos, e pelo seu efeito na comunidade e na dignidade humana e não já pelo incumprimento de ditames divinos, hoje mitos obsoletos. O Pecado, mais que desobediência, é hoje transgressão do que é tido como intrinsecamente humano e, logo, capaz de perigar a existência: a crueldade, o genocídio, a tortura.

O culto da individualidade e a omnisciência da tecnologia explicam muita desta mutação, a par da consciência mais aguda da finitude e imperfeição humana.

Quanto à Religião, surgiu da necessidade natural “de uma narrativa que tende a aplacar o medo e a culpa e a exorcizar o mal”. No entanto, “nada de metafísico e de religioso existe na constituição do medo e na culpa a não ser como efeito histórico e cultural. Não como causa.”

Hoje, em plena transição para algo ainda por definir, pequenos “pontos da situação” como este Nova Teoria do Pecado fazem mais sentido do que nunca.

Fascinante e despretensioso, é um excelente pretexto para discorrer sobre um conceito basilar da nossa ocidentalidade, com a clareza a que Miguel Real já nos habituou, a que associa uma capacidade inata de centrar a reflexão no essencial, sem derivas ou artifícios.

Um livro essencial, de leitura obrigatória, para leigos, ateus, religiosos ou adidos dos caminhos desbravados por quem ama a Sabedoria.

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