A morte sempre foi um poderoso chamariz para a literatura.
O fascínio pelo fim, principalmente quando voluntário e decidido por um escritor cuja arte é distinta e superior, aguça o magnetismo pelas suas obras literárias.
Novela de Xadrez foi o derradeiro livro do austríaco Stefan Zweig, de onde Wes Anderson surripiou muitas das ideias que fazem a magia do argumento e realização de The Grand Budapest Hotel.
Pouco tempo depois de o escrever, deixava uma carta de despedida dactilografada e enviava outras três com instruções para a publicação da novela, suicidando-se em seguida, no seu exílio brasileiro, a 22 de Fevereiro de 1942.
O peso da saudade da Pátria nunca o abandonou e o seu sofrimento profundo pela incapacidade de resistir à força bruta do nazismo e do seu megalómano conterrâneo, acabou por derrubá-lo, ainda a II G.M. ia no seu zénite.
O fantasma nazi paira sobre todo o texto, inteligentemente passado em terra de ninguém, num navio em viagem entre Nova Iorque e Buenos Aires.
Partindo de uma estrutura bastante simples, Zweig explora os mecanismos do xadrez para desenvolver as suas personagens, cuja conduta tem ligação umbilical ao jogo em si (ou à possibilidade de o realizar), assim como ao contexto complexo e imprevisível que conduz à vitória ou à derrota, na vida como diante de um tabuleiro.
Mirko Czentovic, o grande campeão mundial da modalidade, é descrito com detalhe e requinte irónico. Um campónio com distúrbios de atenção, cedo descobre no xadrez o sentido para a sua (de outro modo irrelevante) existência, visto ser incapaz sequer de escrever correctamente ou manter contacto social de qualquer espécie.
A sua inabilidade de formular qualquer pensamento abstracto é de tal forma incomum que a esconde zelosamente, necessitando de um tabuleiro físico e de todas as peças para recriar e treinar as suas jogadas.
“uma figura grotesca, quase ridícula (…) rapaz campesino e limitado”, “No seu limitado cérebro, este rapaz só sabe uma coisa que é o facto de não perder uma única partida de jogo há meses, e como não faz a mínima ideia de que para além do xadrez e do dinheiro há ainda outros valores no nosso mundo, tem todos os motivos para se deslumbrar consigo próprio”
Soa familiar? Provavelmente não será coincidência.
Um improvável rival surge na história, um desconhecido apresentado meramente como Dr. B. Por uma série de circunstâncias, rapidamente demonstra ser o único à altura do campeão, mas apenas no final se revela o elevado preço que pagou por tal nível de perícia.
Dr. B é o verdadeiro protagonista do livro. Prisioneiro de guerra atípico do regime nazi, é detido pela Gestapo na Áustria mas, ao contrário de milhões de desafortunados, pelas ligações às altas esferas do poder que a sua profissão lhe garantiu, é encarcerado numa “gaiola dourada”.
Uma entrevista curta com o biógrafo de Zweig sobre a
“Novela de Xadrez” (contém spoilers)
Fechado num quarto desprovido de qualquer adereço, isolado do mundo exterior, as interrupções servem apenas para interrogatórios de periodicidade e duração irregulares e entrega de refeições. A manipulação psicológica profunda e subtil coloca-o num jogo de resistência, em que a mera possibilidade de controlo e fuga é impossível.
Sem nos alongarmos demasiado na descrição desta estratégia de desgaste e desorientação, revelamos que Dr. B acaba por escapar às garras de Hitler da forma mais inusitada: um livro roubado a um oficial nazi, onde consta uma súmula das grandes partidas da história do xadrez.
Aos poucos, o jogo e as suas indispensáveis maquinações tornam-se centrais ao romance e a esta personagem peculiar, uma fuga providencial a um ambiente hostil, onde o tempo se dissolve, indistinto.
O final é emocionante. A conclusão é um convite ao leitor para que a (re)crie, fechando este fascinante opúsculo literário, com tanto de economia verbal e narrativa, como de encanto e inteligência.
A mente como reduto último do Homem, num contexto de desespero e angústia irremediáveis, é aqui perspectivada com a dimensão devida e sem qualquer ilusão.
Não sendo tema inovador, casar essa temática com o xadrez revela-se eficaz e aliciante.
Este jogo, que é bem mais do que isso, pela sua especificidade emula muito do mais fundamental natureza humana: o rigor (nas jogadas, na estratégia, no estudo de cada partida, no funcionamento do organismo humano e da mente no Homem) e a aleatoriedade (a impossibilidade de prever a reacção do adversário, as doenças e outras maleitas).
Desta feliz associação, Zweig desenha personagens marcantes e situações em que esperança e desespero se confrontam.
É o acaso que acaba por salvar e condenar o nosso Dr. B, preso e libertado por mecanismos que controla na perfeição, apenas porque lhe são naturais, como a respiração ou os mais primevos instintos.
Na “Novela do Xadrez”, o poder mais intrinsecamente humano é exposto com o desencanto e desesperança de quem sabe já nada poder contra o que o supera e esmaga. Mas Zweig, como comprova toda a sua obra, soube (pelo menos temporariamente) transcender a depressão que o invadia, legando às gerações futuras um testemunho essencial: a única rendição incondicional a que estamos condenados é a Morte.
Entretanto, resta-nos encarar de frente todos os Mirkos e Hitleres, reais ou metafóricos, e esperar o melhor. O resto nada mais é do que jogo e casualidade, embrulhados em múltiplas ideologias, crenças e explicações.
O temível Mirko revela-se afinal superável e Dr. B, apesar de um digno adversário, sofre de outras insuficiências que o limitam.
Do combate final, pretas contra brancas, filosofias de vida e de jogo opostas, ninguém sai vencedor, demonstrando-se a insuficiência da mera fome de vencer para que a vida encontre o sentido que insiste em escapar-lhe. Sem equilíbrio e paz de espírito, em última análise tudo se revela fugaz e irrelevante.
Zweig descobriu-o da pior forma possível. Esta foi a melhor forma que encontrou de legar a sua visão à eternidade. Ao leitor, resta acarinhá-la e recordá-la, em memória deste e de outros grandes vultos que recusaram o cheque-mate até ao último suspiro.
“Até a mais simples reflexão bastaria para tornar claro que, sendo o xadrez um jogo de raciocínio puro e isento de qualquer acaso, é logicamente um absurdo querer jogar contra si próprio. No fundo, o que atrai no xadrez é unicamente o facto de a sua estratégia se desenvolver de forma diferente em cérebros diferentes (…) as brancas almejam ultrapassar e estancar as secretas intenções das pretas. Se as pretas e as brancas fossem uma única pessoa, estaríamos então perante uma situação absurda em que o mesmo cérebro devia e simultaneamente não devia saber algo (…) Este tipo de pensamento duplo pressupõe na realidade um desdobramento total da consciência (…) querer jogar contra si próprio é portanto, no xadrez, tão paradoxal como saltar sobre a sua própria sombra. ”
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