Em O Adversário (finalmente editado em Portugal pela Tinta-da-China, vinte anos depois da sua publicação original), Emmanuel Carrère consegue o feito de sair incólume (literária e eticamente) da imersão no território perigoso desta não-ficção, em que a fraude e a perversão homicida (entre outros crimes) são os temas que lhe subjazem. O resumo da história é de formulação simples: Jean-Claude Romand, homem de família, classe alta, médico, professor, conferencista, renomado cientista e pesquisador da Organização Mundial de Saúde, assassina na mesma noite toda a sua família (esposa, dois filhos pré-adolescentes, os pais e o cão), e em seguida tenta o suicídio, ateando fogo na casa de família onde se fecha com os cadáveres da mulher e dos dois filhos. Encontrado insconsciente, é preso, julgado e condenado a 25 anos de prisão, sem que seja apresentada qualquer explicação verosímil para o seu acto insano. A investigação no âmbito do processo criminal revela uma fraude que remontava aos tempos de faculdade (em que o curso de medicina nunca foi concluído, embora tenha permanecido inscrito por mais de uma década sem fazer qualquer exame ou sequer frequentar aulas) e incluía todos os seus empregos e conferências mundo fora, assim como a alegada facilidade em obter juros favoráveis em determinado banco, onde vários milhões de francos de familiares e amigos foram depositados e usados em proveito próprio.
Carrère aborda este monstro com “luvas de pelica”, sem medo de chafurdar na sordidez que se foi acumulando na vida de Romand, mas respeitando a memória dos vivos e dos falecidos, num equilíbrio impossível entre a imparcialidade jornalística e a especulação necessária criar um cenário aliciante para o leitor e complementar aos espaços deixados pelos silêncios e o decoro que algumas situações exigem. Usando de algum sarcasmo e expondo a sua própria incredulidade perante os factos revelados, Carrère não se coíbe de opinar e levantar questões e hipóteses verosímeis, em nome da coesão da história contada: um homem que durante duas décadas se escondeu à vista de todos, sem ser desmascarado ou sequer confrontado com as suas mentiras.
“Durante toda a investigação, o juiz nunca deixou de se espantar por telefonemas desses [aos locais onde Romand alegava trabalhar] não terem sido feitos antes, sem malícia ou suspeita, mas simplesmente porque, mesmo quando se é «muito compartimentado», trabalhar dez anos sem nunca a mulher e os amigos ligarem para o emprego é coisa que não acontece. É impossível analisar esta história sem se pensar que tem de haver um mistério ou uma explicação escondida. Mas o mistério é não haver explicação e, por implausível que pareça, foi mesmo o que aconteceu.” (75)
Claro que Carrère não se fica por este angustiante vazio e, por via de um enquadramento biográfico e contextualizando eventos determinantes e ilustrativos da personalidade de Romand, constrói um retrato bastante credível e completo do monstro e da sua construção. Entre cartas trocadas com um Romand já encarcerado e desmascarado, o autor tenta compreender tamanha compartimentação de realidades e a ilusão de uma rotina.
“Sabia que a sua história não podia acabar bem. Nunca confidenciou ou tentou confidenciar o seu segredo. (…) Em quinze anos de vida dupla, não foi ter com ninguém, não falou com ninguém, não se meteu em nenhuma dessa franjas marginais, como o mundo do jogo, da droga ou da noite, onde teria podido sentir-se menos só. Nem nunca procurou ludibriar o mundo exterior./ Quando entrava no cenário doméstico da sua vida, cada um pensava que ele vinha de outro cenário, onde desempanhava outro papel – o de pessoa importante que corre mundo, se dá com ministros, janta em recintos oficiais -, e que voltaria para lá, quando saísse dali. Mas não havia outro cenário, nenhum outro público para quem interpretar o outro papel. Lá fora ficava nú. Regreessava à ausência, ao vazio, ao branco, que não eram acidente de percurso, mas a única experiência da sua vida.” (80)
Sem nunca ter lido uma página do processo judicial (por opção própria, porque o teve ao seu dispôr), Carrère assistiu às sessões de julgamento e entrevistou familiares e amigos, devastados pela realidade brutal que testemunharam, e com a qual compactuaram involuntariamente. “Todos se perguntavam: como pudemos viver tanto tempo com este homem sem suspeitar de nada?” (20) A culpa é-lhes comum, assim como a impotência perante o brutal desenlace. As consequências fazem-se sentir com maior intensidade nas gerações mais novas (filhos e netos), incapazes de assimilar tamanha violência sobre os seus colegas de brincadeiras. Aos poucos percebemos como Romand o fazia: as subtis mudanças de conversa, fingindo pudor ou embaraço perante elogios ou perguntas directas sobre o seu trabalho, os pedidos para todos os contactos serem dirigidos para o seu beeper e nunca para o local de trabalho, onde não queria ser importunado, os dias inteiros que passava no carro, em estações de serviço ou em hotéis, para depois fazer telefonemas ou enviar cartas com informações de meteorologia ou topografia que obtinha nos noticiários, revistas de viagem ou mapas.
Para além do circunstancial e do óbvio apelo sensacionalista de todo o caso, O Adversário convoca uma reflexão profunda sobre o que constitui uma identidade humana funcional e verdadeira. As respostas vagas e nunca definitivas, remetem para os preocupantes indícios semeados ao longo das suas páginas. A vida de Jean-Claude Romand era virada para o exterior, para as expectativas a atingir e o estatuto social a manter a todo o custo, perante a alternativa inconcebível de encarar o cenário oposto: a vergonha do fracasso e de uma mentira que tomou proporções criminosas e incontroláveis. Romand não era mais do que a sua rotina secreta e a personagem ficcional pública, mesmo na intimidade do lar. “Uma mentira, normalmente, serve para encobrir uma verdade, algo de que talvez tenhamos vergonha, mas que é real. A sua não encobria nada. Sob o falso doutor Romand não havia nenhum verdadeiro Jean-Claude Romand.” (79)
Os mistérios da mente e a sua capacidade de camuflagem das emoções são imensos, mas o que Emanuele Carrère aqui escancara é o absurdo da nossa existência e da mecânica envolvida na criação de uma personalidade, através do retrato exímio do seu extremo mais negro e inexplicável: um mitómano homicida, “um autómato, privado de qualquer capacidade de sentir, mas programado para analisar estímulos externos e ajustar-lhes as suas reacções.” (142) No entanto, assume sempre os dilemas e a culpa de, através da sua obra, perpetuar o estereótipo do criminoso que se torna famoso na exacta proporção da violência do seu crime.
Jean-Claude Romand foi libertado no final de Abril de 2019.
https://www.youtube.com/watch?v=DN7IGyNmp4I&feature=youtu.be
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