home Antologia, LITERATURA O Ano do Pensamento Mágico – Joan Didion (Cultura Editora, 2017)

O Ano do Pensamento Mágico – Joan Didion (Cultura Editora, 2017)

O Ano do Pensamento Mágico é um daqueles livros a que, chegados pela fama, ficamos pelo fascínio que nos desperta. Joan Didion, escritora e conhecida cronista norte-americana, afamada pelos seus ensaios e reportagens sobre o contexto sócio-politico americano, com um tom seco e irónico e uma escrita inclemente, é apanhada desprevenida pela vida. Em pouco tempo, perde a sua família nuclear. Primeiro o marido John Gregory Dunne e em seguida, a filha adoptiva Quintana Roo Donne (tema para o seu livro Blue Nights, igualmente essencial). O dia 30 de Dezembro de 2003, termina sem aviso, com um enfarte à mesa de jantar. Nove meses e cinco dias depois, surgiram as primeiras palavras:

A vida muda rapidamente.

A vida muda num instante.

Sentas-te para jantar e a vida, como a conheces, termina.

A questão da autocomiseração” (9)

Assim começa este livro, que se torna numa “tentativa de perceber o que se seguiu” (12), quando as palavras que sempre lhe serviram de ponte comunicante com o Outro deixam de ser suficientes: “mais do que palavras para encontrar um significado (…) em que preciso que aquilo que digo e que penso seja penetrável”. (12) Contra a objectividade que sempre a guiou, mesmo depois dos paramédicos em casa, da morte declarada, da autópsia, Joan Didion decidiu manter o marido vivo enquanto pôde, através da escrita e da Razão, durante O Ano do Pensamento Mágico, em que ainda seria possível trazê-lo de volta.

“Vejo agora que a insistência em passar sozinha aquela primeira noite, era algo mais complicado do que parecia, um instinto primitivo. Claro que sabia que o John estava morto. (…) Porém, eu não estava de maneira alguma preparada para aceitar as notícias como algo definitivo: havia uma possibilidade, na qual eu acreditava, de que aquilo que acontecera era reversível. (…) Precisava de estar sozinha para que ele regressasse. Este foi o princípio do meu ano do pensamento mágico.”  (29)

O passo seguinte foi o regresso à sociedade, com o inevitável confronto com a incapacidade generalizada de lidar com o luto e a dor alheia, evitando encará-los como a doença que são. A informação ganha um peso brutal para a sua sobrevivência, e acaba por constituir uma parte significativa do livro, uma muleta em que se apoiou por lhe ser familiar e confortável:

“tinha sido treinada, desde criança, a ler, a aprender, a trabalhar, a ir em busca da literatura. Informação era controlo.” (38)

A literatura médica e clínica, mais do que a ficcional, traz-lhe uma sensação de poder (que sabia ilusória) sobre os imponderáveis que se vão sucedendo, mas também sobre o tempo, retardando-o ou invertendo-o. Já as memórias emocionais, analepses a que chama “vórtices”, têm o efeito oposto de a afundar na tristeza e na autocomiseração, que tanto despreza por prejudicar o seu plano. Já a reconstituição da “sequência exacta dos acontecimentos” (52) revela-se essencial, e Didion fá-lo de forma exaustiva, como se a sua vida dependesse disso. Nesta obsessão, vemo-la esbracejar contra as expectativas em relação à mulher enlutada, a reagir com o que sabe poder salvá-la.

Ao longo do livro encontramos pequenos mantras, que repete (para si e para o leitor) como garantias de sanidade, reforço dos seus planos ou recordação de momentos únicos. Porque afinal também de palavras se faz a intimidade e o carinho familiar. É com eles que recentra a atenção no essencial e, escapando às armadilhas da depressão, revê pretensos erros e omissões. “Mais do que um dia mais (…) outro pedaço do nosso código de família” (55), que John tinha recordado a Quintana no dia do seu casamento.

Aos poucos, a dor é substituída pelo luto, “o acto de lidar com a dor” (112). A subtil passagem do tempo vai dissipando a reconstituição das rotinas partilhadas, dos objectos, pensamentos e espaços que fazem um casamento. Mas Didion acaba por perceber que passou meses a tentar “reverter o tempo”, inicialmente para construir uma realidade alternativa e, mais tarde, para “reconstruir (…) o colapso da estrela morta.” (141)

A frase que John utilizava como consolo em momentos de crise era um simples “Tudo se equilibra no final.” (133). O seu sentido sempre escapou a Didion, até o sentir na pele. Pelo caminho sinuoso e solitário que trilhou, de reconhecimento dos mecanismos de sobrevivência ao choque, da impossibilidade de reescrever o passado, das suas limitações face à dimensão avassaladora da perda, acaba por atingir o equilíbrio possível.

“A dor da perda acaba por ser um lugar que nenhum de nós conhece até o alcançarmos. (…) Podemos esperar a frustração, ficar inconsoláveis (…) Não esperamos ficar literalmente loucos ou ser «a mulher calma» que acredita que o marido está prestes a regressar dos mortos” (145). E conclui: “Nem podemos conhecer, de antemão (e aqui está o cerne da diferença entre a dor como a imaginamos e a dor como ela é) a infindável ausência que se segue, o vazio, o preciso oposto de sentido” (146).

Sem cair em lugares comuns, Joan Didion atinge a sua orgulhosa epifania final: “percebo como somos vulneráveis à persistente mensagem que nos diz que podemos evitar a morte. E vulneráveis ao seu correlativo castigo: a mensagem que nos diz que, caso a morte nos apanhe, a culpa é toda nossa.” (157)

Um ano depois da tragédia, quando o calendário começa a repetir os dias vividos em comum, é John quem a “abraça” e recorda “Tens de ir com a mudança.” (176) Didion largou a bagagem e seguiu caminho. O livro que procurava quando a dor a inundou foi aquele que acabou por sair da sua pena, para nossa sorte. Hoje conta 84 anos.

A todos aqueles a quem a perda pesa (ainda) mais no Natal: não se isolem. Às vezes, um livro e uma boa gargalhada partilhada fazem toda a diferença.

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