É uma frase batida para falar dos grandes escritores, por vezes dita pelos próprios: passei a minha carreira a escrever o mesmo livro. A obra de Ana Teresa Pereira é o exemplo acabado de como esse aparente senão é uma bênção para os amantes da literatura. Neste O Atelier de Noite (Relógio D´Água, 2020) encontramos duas partes distintas – a 1ª homónima do título e a 2ª intitulada “Sete Rosas Vermelhas” – com evidentes pontos de contacto entre si e com os livros anteriores da autora. As obsessões, o ritmo, as iterações, os nomes de personagens que reaparecem como espectros e as referências expressas ao trabalho de criação literária pelas suas narradoras são disso testemunho. «Se continuar a escrever a história, uma e outra vez, talvez um dia fique tudo certo.», diz-nos Agatha Christie na página 46.
Com o seu estilo inconfundível, Ana Teresa Pereira baralha percepções e mescla vozes de personagens e narradores com o que deixa de seu em cada volume, mas o tema da reinvenção da história pessoal de uma mulher no limite é recuperado neste O Atelier da Noite, com a grata surpresa de evocar um dos episódios mais misteriosos da história da literatura: o desaparecimento de Agatha Christie durante onze dias, reaparecendo com alegações pouco convincentes de amnésia.
Com frequentes momentos de meta-ficção, a escrita de Ana Teresa Pereira é agitação desfocada e enquadrada por uma bela moldura, como o Stormy Sea with Blazing Wreck de Turner. O domínio exímio da linguagem e dos mecanismos literários que desenvolveu durante a sua carreira são instrumentos para testar a nossa atenção e paciência. As mudanças na voz que nos fala, alternando entre a primeira e a terceira pessoa, o narrador presente/omnisciente e o ausente/duvidoso, mas sempre fugidio, empolando o incómodo, surpreendem o leitor, forçado a verificar se ainda tem pé depois de cada mudança da corrente.
Servindo-se do já referido fait-divers, Ana Teresa Pereira cerca-nos das habituais referências artísticas eclécticas para se demorar num pantanoso terreno ficcional que lhe é familiar: as infinitas possibilidades que uma vida reserva às mulheres que ousam desejar para além da rotina de acessório do ego masculino. “Há um momento na nossa vida em que nos podemos tornar noutra coisa (91). Em O Atelier da Noite encontramos duas mulheres separadas por décadas de progresso cultural mas em circunstâncias similares e intemporais: um casamento desfeito pela traição do marido e a decisão de começar de novo. Apesar de apenas uma ser bem sucedida, o sabor da liberdade é partilhado, com o foco “nas coisas importantes da vida” (93), afinal o centro nevrálgico da obra.
Num plano mais profundo, a prosa de Ana Teresa Pereira recorda-nos o poder paralisante do condicionamento a que a mulher está sujeita praticamente desde a primeira inspiração. Mas o elemento marcante e incontornável desta obra é a exposição da intimidade sentimental das personagens, pois das suas racionalizações e reflexões nasce o desejo de evasão e a nossa empatia para com ele, com a percepção do meio, de si e do trabalho no processo de libertação, de que este livro tão bem dá conta. Tal como Ana Teresa Pereira, também esta Agatha Christie escreve livros distintos perpassados por uma narrativa que lhes subjaz e, mesmo não conhecendo na totalidade, intuímos e vemos comprovada pelas personagens e os seus narradores. A escrita é um jogo de escolhas entre o que fica e o que é “libertado”, mas no final de contas, “Escrevemos sempre sobre outra coisa” (48) Se é verdade que esta libertação se fica pela escrita, é certo que a beleza e a verdade nos dão asas, e com este O Atelier de Noite voamos alto.
Mais literatura AQUI