home Antologia, LITERATURA O Atrito da Memória – Miguel Cardina (Tinta-da-China, 2023)

O Atrito da Memória – Miguel Cardina (Tinta-da-China, 2023)

Mais de que uma investigação cuidada e bem documentada, com fontes múltiplas e linguagem e construção adaptadas ao leitor comum, leigo desta matérias, em O Atrito da Memória (Colonialismo, Guerra e Descolonização no Portugal Contemporâneo), Miguel Cardina procura começar uma conversa alargada que tarda em Portugal sobre a “memória do colonialismo e da guerra no Portugal contemporâneo”, através de um “ensaio sobre as dinâmicas entre história, memória e poder”.
Ideologia, imaginário e memória são conceitos-chave com que joga para definir o que classifica como “afasia colonial” (usando o conceito de Ann Laura Stoller) e caracterizar o modo como Portugal aplicou uma forte “organização do esquecimento” relativa a esta temática essencial, mesmo depois do 25 de Abril e em casos mais recentes, com a RTP, a Igreja, o Estado-Maior-General das Forças Armadas e outras instituições a protagonizarem censura de peças jornalísticas que referiam as atrocidades praticadas durante a guerra colonial pelos militares portugueses.
A mitologia da colonização portuguesa é rastreada na sua origem, apresentada de forma ostensiva e falseada como mais pacífica que todas as outras, até benéfica para os povos colonizados. A retórica quase hagiológica e selectiva dos Descobrimentos e dos feitos do passado (sempre excluindo a violência e violação de direitos humanos básicos para obter lucro e matérias primas), recuperada sucessivamente desde os tempos da 1ª República (para justificar a entrada na I Guerra Mundial) passando pelo Estado Novo até à actualidade (da Expo 98 à Web Summit, passando por uma miríade de cerimónias e iniciativas em que Portugal se pretende promover como cosmopolita, europeu e avançado) é contextualizada com material da época e enquadramento teórico certeiro e na extensão adequada para manter a leitura fluida e o interesse em alta.
Por outro lado, foca diversos paradoxos do caso português, em especial o facto de tanto a revolução de 25 de Abril como a guerra colonial terem como protagonista o exército português, vítima (de um Estado Novo que enviou milhares para a guerra sem qualquer apoio, que ainda hoje é escasso para os veteranos) e carrasco, e os efeitos que esse facto teve na retórica que se produziu em democracia e na memória que perdura até aos nossos dias, com políticas de esquecimento institucionalmente promovidas que tendem a reinterpretar as teorias de excepcionalidade da expansão portuguesa à luz do status quo, escolhendo ignorar a sua origem e maniqueísmo, em detrimento de um debate realmente esclarecido e aberto, que inclua as nações anteriormente colonizadas por Portugal, mas também os chamados “retornados”, os “desertores” e os militares que efectivamente estiveram no terreno, raramente ouvidos ou sequer protagonistas das suas próprias narrativas, que, por incapacidade, trauma, ou corporativismo, ainda hoje hesitam em contar com detalhe, guardando essa partilha para as reuniões de batalhões que grassam por esse país na época estival ou para a literatura, como é o caso de António Lobo Antunes, aqui analisado.
Meio século de democracia é suficiente para desenterrar estes esqueletos escondidos da nossa História, aspirando a uma identidade nacional mais limpa de mitos de origem ideológica e política, e realmente inclusiva, o que passa não só pela produção de volumes como este, mas também por alterações mais estruturais, por exemplo no ensino da História – onde prevalece a retórica do excepcionalismo lusitano e da inferioridade do povos colonizados – ou na eliminação dos silêncios comprometidos dos sucessivos governos democráticos, incapazes de promover um contacto amplo com todo a amplitude de factos e intervenientes na “narrativa” nacional.
Um documento essencial para começar a quebrar tabus, informar e agitar consciências.

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