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O Brasil da minha rua

O Brasil virtual das redes sociais, da televisão e dos jornais, onde é cada vez mais difícil encontrar o rosto da verdade factual e noticiosa, esconde o Brasil real que é o Brasil da minha rua, do meu bairro. É só a partir desse Brasil que posso falar. Só a partir do Brasil real de cada um, deveríamos poder falar. E é precisamente por isso que me é urgente escrever, neste momento, em vésperas de eleições, a partir da minha breve história de dois anos com esta gente que me rodeia. Que são crianças, mulheres e homens reais, com nome e rosto. É por eles que escrevo. É a eles que quero dar voz. Não por encomenda, mas pelo que vejo acontecer-lhes numa sucessão de fatalidades das quais já não esperam escapar. É a voz dos negros da periferia. É, primeiramente, a voz das mulheres. Das mães. Das mães que dormem à porta do posto de saúde para conseguirem vaga. Levam as crianças com elas. Vão caminhando, mesmo se é longe, por não terem dinheiro para o ônibus. São mães sós. O parceiro já partiu para outra. Às vezes muito novas, no começo da adolescência. São mães de muitos filhos, porque o município ficou sem anti-concepcional, e os homens não gostam de esperar para colocar camisinha. São mulheres que apanham se desobedecem aos maridos, num silêncio que ninguém ousa romper. São mulheres assassinadas pelos namorados. Pelos ex-namorados. Assassinadas socialmente pelas instituições que lhes barram a entrada por causa do tom de pele. São mortas por si mesmas porque tantas vezes desistem de se curar. E, esgotadas, desistem dos próprios filhos, quando o fim das forças se encontra com o vazio de uma vida que só se adia. Os filhos rapazes do meu bairro morrem antes dos 22. Neste Brasil real onde eu conheci o Rodrigo, o Jean, o Leandro, o Jailton, o Hugo, o Emerson, é-se assassinado. É-se assassinado pela polícia militar. Quando um PM é morto ou ferido, a vingança deixa várias vítimas nos dias seguintes. Muitos conseguem fugir e passam meses, anos, noutra cidade, para um dia voltarem e serem mortos na mesma. Neste meu Brasil é a vingança a última a morrer. Também se é morto por ciúme. Por discussões onde a virilidade não aceita derrotas. Vinga-se quem vingou. As armas circulam. Acessíveis. Visíveis. Já pertencem ao vocabulário e ao imaginário das crianças que começam a falar. As brincadeiras já poluídas por gestos e encenações de ataques, presos e mortes. Os sonhos fabricam-se a partir dos heróis das execuções sumárias. Sem perceberem que os bandidos a abater serão invariavelmente eles próprios. Assassinados pelas armas cujos modelos já conhecem perfeitamente com a idade em que entram na escola. Antes de aprenderem a ler e a escrever.

É esse o ABC do Brasil da minha rua. É essa a sabedoria que chega primeiro e que a escola, que chega depois, não consegue suplantar. Neste Brasil, muitos adolescentes de 15/16 anos são analfabetos, apesar de não perderem uma aula. Muitos encontram nas drogas um refúgio, um sentimento de pertença. Começam os roubos em casa, nos vizinhos, as dívidas aparecem e a morte (o assassinato) chega. Outros começaram a beber cachaça desde criança, com o próprio pai. Assim se forma o carácter do macho de que um pai se quer orgulhar. E assim um dia vi desaparecer o José António, outro dia o Edi.

https://www.youtube.com/watch?v=S4xPXxUjAyw

No dia 7 vou votar. Sou daqueles que encontra ainda algum sentido no voto popular. Outros preferirão que alguém tome as rédeas das suas vidas e das suas liberdades. A esses, eu digo que a morte que impera no Brasil do meu bairro não precisa de mais incentivos. Que os heróis, perversamente eleitos pelas crianças que um dia às suas mãos hão de morrer, não precisam de promoção. Que para estas crianças, é mais útil uma escola melhor do que uma delegacia maior. Que enquanto houver medo, haverá sempre o desejo de ter uma arma. E enquanto houver armas, a vingança continuará a ser a última a morrer.

https://www.youtube.com/watch?v=JUAAy35qIxU

Texto da autoria de um cidadão brasileiro que quer manter o anonimato.

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