Até maio de 1768, a censura editorial portuguesa estava nas mãos de três instituições: o Desembargo do Paço, ou seja, a Coroa; o Ordinário, ou censura episcopal; e a Inquisição. A partir dali, no âmbito da reorientação ideológica de D. José I e seu ministro Sebastião José de Carvalho e Melo – Marquês de Pombal e Conde de Oeiras –, passa a existir uma Real Mesa Censória, organismo único e centralista constituído por excelsas personalidades do meio intelectual português, cuja tarefa seria perorar sobre todas as obras publicadas no país, e decidir os termos em que estas seriam ou não “dignas de ver a luz pública”. Este é o ponto de partida para este O Censor Iluminado, estudo de Rui Tavares, cuja hipótese será a de que esta “nova censura representaria uma rotura de conceção que traria em si um imaginário completamente novo dos livros, da cultura e da política”. O que entendiam estes censores por “luz pública”? Em que medida a leitura e avaliação destes homens corrobora ou diverge do despotismo esclarecido europeu? O que aprendemos, a partir do trabalho da Real Mesa Censória portuguesa, sobre conceções distorcidas do Iluminismo nos séculos que lhe seguiram? É no âmbito deste extraordinário trabalho de investigação historiográfica, que ocupou Tavares durante cerca de duas décadas, que surge este Ensaio sobre o Pombalismo e a Revolução Cultural do Século XVIII. Um portento, sob várias perspetivas. Em primeiro lugar, pela linguagem desprovida de verborreia científica. Seria bom, cada vez mais, demonstrar que o trabalho das ciências humanas e sociais pode interessar ao grande público, mas não abunda quem o faça de forma cordial para com o leitor. Estas setecentas páginas são um deleite, sobretudo ao respeitarem o fator da legibilidade perante um assunto que poderia ficar circunscrito ao interesse do intelectual. A escrita de Rui Tavares dribla esta questão com sagacidade: desnuda o processo, nomeia as fraquezas e as vitórias, identifica os altos e os baixos do seu trabalho de reflexão sobre o material analisado e respetivas conclusões. Por exemplo, no início do segundo capítulo, em que se dedica à questão “como”, após esclarecer detalhadamente “quem” eram os censores: “O interesse desta mudança de análise é, em primeiro lugar, e muito simplesmente, mudar a forma de análise – uma obrigação cíclica do historiador e uma forma de renovar o interesse por aquilo que estuda, passando a estudá-lo de outra maneira.”
Agradecemos o acompanhamento metodológico, assim como as (falsas) confissões de “batota”, por exemplo perante a enumeração de eixos da ação da censura do ponto de vista temporal, em que designa um deles “contra o futuro”: “O segundo eixo chamar-se-ia (…) «contra o futuro», e dedica-se à ação dos censores contra o espinosismo, o pirronismo, o tolerantismo e o indiferentismo; ou seja, contra aquilo que hoje sabemos estar na base das ideologias republicanas, democráticas e liberais a partir do fim do século XVIII. Aqui devo admitir uma certa batota. Aquilo que nós sabemos ser «o futuro» era desconhecido para os censores. Não só eles não sabiam que as tendências tolerantistas e indiferentistas (…) iriam tornar-se dominantes no futuro, como não sabiam que o espinosismo e o pirronismo (…) iriam desenvolver-se até constituírem as bases dos liberalismos no século XIX e do republicano democrático nos séculos XIX e XX.” Tavares sabe que entre o século XVIII e o seu futuro se desencontram os conceitos e as associações mentais, e é nos vaivéns cronológicos para denunciar a linguagem como retrato de um zeitgeist que a sua tese ganha robustez.
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A censura pombalina interessa-nos porque nos obriga a diferenciar os termos que usamos com frequência sem reflexão apurada: O que significa “censurar”? Qual é o “interesse” de uma obra? Quem decide e como sobre a “utilidade pública”? Quão iluminado é o Iluminismo? Quão iluminados são os regimes democráticos pluralistas? Ao longo de O Censor Iluminado somos guiados a ler, com a devida contextualização, textos até agora adormecidos em arquivos, e que Tavares organiza de forma a esclarecer os critérios utilizados por esta exclusiva equipa censória para a aprovação ou reprovação de uma obra para o mercado português. Não é de interesse menor, pois trata-se do acesso ao trabalho quase misterioso de dez pessoas que, ao longo de uma década, até à morte de D. José I, decidiram o que os leitores portugueses podiam ler, de “John Locke, Voltaire ou Espinosa [a] (…) um entremez cómico para um teatro lisboeta, uma folhinha de devoção ou uma receita médica para achaques vários.” Ao contrário do usual até ali, a Real Mesa prezava o segredo e omitia ao público os relatórios dos censores, por vezes longuíssimos e objeto de discussão acalorada entre os vários membros. Os temas discutidos abarcavam desde a qualidade de uma tradução à questão da uniformização ortográfica da língua, passando pela avaliação da qualidade milagrosa ou não de um fenómeno venerado como tal pelos crentes.
Ressalvamos, por fim, a transdisciplinaridade. O que têm que ver as bruxas de Macbeth com o Terramoto de 1755? E Henry James com a forma como adjetivamos experiências lúdicas? Que faz Orwell numa secção de livros técnicos e agrícolas na Etiópia? Tais detalhes, uns anedóticos, outros relações estabelecidas pelo próprio, atestam da qualidade simpática de uma escrita que a Tinta-da-China em boa hora partilhou com os seus leitores, como já tem vindo a fazer com outras obras do historiador e político, na prática ramificações do ensaio aqui em questão, como O Pequeno Livro do Grande Terramoto (2009), ou Esquerda e Direita: Guia Histórico para o Século XXI (2015). Se o tamanho do objeto impedir uma leitura integral, recomendamos pelo menos o capítulo (quase) final, e em especial a subparte intitulada “Destilação e Fermentação”, onde o potencial ensaístico de Rui Tavares sobre a História e a Sociedade nos parecem destacar-se sobremaneira.
Por defeito profissional, Luis Pimenta Lopes escreve de acordo com o novo desacordo ortográfico.
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