O cinema é uma peça da norte-americana Annie Baker, vencedora do Pulitzer em 2014. E falamos de quê? Ora, chamemos, sem medo de ferir suscetibilidades. as coisas pelos nomes. O cinema é um texto pop ou, se quisermos, uma espécie de “fastfood” teatral. Até aí tudo bem. Quem nunca sentiu algum prazer a degustar um hambúrguer com batatas fritas? O problema aqui é outro. Sendo pop, este cinema parece ter a pretensão de ser outra coisa, isto é, uma espécie de hambúrguer versão artesanal com empratamento gourmet. Uma combinação de sucesso?! Aparentemente.
A companhia Artistas Unidos, formada em 1995, merece todo o crédito pelo trajeto que tem feito e a programação que apresenta é motivo de merecida expectativa. Aqui lançaram-se no desafio de adaptar uma peça produzida em mais de 12 países e apresentada em mais de 150 teatros dos Estados Unidos da América, que pode ser adquirida no Teatro da Politécnica. A deliciosa coleção Livrinhos de Teatro, feita em parceria com a Culturgest, é em si um motivo para passar por lá.
A peça decorre num cinema decadente em Massachussets e a encenação parece fiel às didascálias. Se as considerarmos em sentido literal, pelo menos.
Se é certo que sentarmo-nos para assistir a um espetáculo de teatro e vermos, à nossa frente, uma sala de cinema, é sui generis e potencia uma espécie de desafio sensorial, esta atraente inversão (ou quase) de papéis não chega para nos agarrar. A falta de dinâmica parece pairar ao longo do espetáculo, como se estivéssemos em desacerto com o tempo que ali espiamos.
Na realidade, a peça cinge-se a uma sucessão de diálogos, partilhas ocasionais entre colegas de trabalho que, enquanto exercem funções monótonas, e esfregam o chão, varrem pipocas, limpam líquidos despejados nas cadeiras e retiram objetos inadvertida ou negligentemente esquecidos na sala, tentam dar um sentido às rotinas. Ora Sam, trabalhador mais experiente, que tenta demonstrar a importância dos detalhes das suas funções e a sua superioridade relativamente a Avery, um jovem trabalhador, recém-chegado. Ora Avery, o sonhador que, sem que o procure, se apodera do sonho acalentado por Sam de mudar as cabines, tarefa adstrita a Rose, personagem que enche a sala mesmo quando se encontra dentro da cabine projeção.
Avery enfrenta uma espécie de praxe rumo à aceitação dos colegas de trabalho parecendo encarnar uma das faces da tirania do mundo laboral com que convivemos de forma mais complacente.
Os diálogos também são feitos destas disputas, de hierarquias, de pequenas invejas e muito da sedução de Rose ao público. Rose que, presente ou ausente, lança uma espécie de inquietação nas conversas e introduz os afetos escondidos nos desabafos que marcam a jornada de trabalho.
Esta reflexão acompanha todo o espetáculo. Ou deveria… Os limites entre a solidariedade e o receio, por assumir, de se ser ultrapassado num contexto de competição, sobretudo num país em que despedir é tão simples como mudar de camisola. A rivalidade entre Avery e Sam, na qual só Sam participa, é polvilhada por uma paixão oculta que Sam guarda por Rose, motivo velado da sua separação conjugal…
E o cinema, onde está? Nas referências a Pulp Fiction, Django ou Mulholland Drive? Ou nos jogos entre Sam e Averyque combinam alusões a atores e cenas emblemáticas de filmes mais ou menos conhecidos do grande público? No confronto entre o gosto mais ou menos próximo do cinema comercial de Sam, que fala deslumbrado de Avatar e as preferências de Avery? E o cinema onde está? No fantasma do cinema digital presente em alguns dos diálogos?
É pouco. É muito pouco. O encantamento pelo cinema parece frouxo, forçado. As interpretações nunca enchem medidas, sem que, contudo, lhes encontremos falhas, talvez a personagem de Rose, nos salve da estagnação do espetáculo. Por outro lado, o que um Sam, comovente por estar tão próximo da desgraça das vidas difíceis dos simples, nos dá, por força de uma interpretação consistente e segura, também não evita que a peça, em vários momentos, pareça arrastar-se a nossos olhos.
Os black outs (infindáveis!) a cada mudança de cena, fustigados pelo som de pipocas despejadas no chão, para que a limpeza diária se reinicie, são de uma monotonia e de uma previsibilidade embaraçosa, sem qualquer compensação.
Não, não é uma peça que não mereça ser vista. Não é tão pouco um texto que não mereça ser lido. Há especiarias no hambúrguer que afinal não é gourmet: a exploração da dinâmica das relações de trabalho e da dimensão da partilha num contacto escrutinado diariamente e de afetos sufocados que se libertam de forma inusitada (no mundo do mundo do trabalho como na vida, por muitas que sejam as máquinas ou tecnologias, são sempre as pessoas e isso é inultrapassável).
A peça é menos cinema, o cinema é só um pretexto, um acessório, ou pelo menos assim o parece, e é essa é a grande traição da peça. Não entramos num plano de Wenders, não sufocamos na beleza da estética de Malick, não, claro não. Nem por dois segundos, através do teatro, o cinema nos abraça sem que o possamos largar. O cinema neste palco é cru, despido, e tudo o que é profundo e denso, sobretudo os diálogos, é atravessado por vários buracos negros.
“Black out”. O último. Fim.
Texto de Joana Neto.
Joana Neto, por defeito profissional, escreve de acordo com o novo desacordo ortográfico.
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