home Antologia, LITERATURA O Crime do Padre Amaro/A Relíquia (Livros do Brasil, 2020)

O Crime do Padre Amaro/A Relíquia (Livros do Brasil, 2020)

Uma reedição de Eça de Queiroz nunca será tempo perdido. Nem da parte de quem edita, nem do lado de quem relê, ou lê o que já devia ter lido. No caso, os Livros do Brasil reeditaram, em simultâneo, O Crime do Padre Amaro e A Relíquia. Poderá haver mais em comum entre estes dois livros do que se suporia, além da óbvia autoria partilhada. Ambos são, cada um à sua maneira, um libelo contra a crendice e um manifesto de oposição ao fechamento das sociedades que se deixam enclausurar, entregando a chave do cárcere a beatas e outras agências.
Tanto Amaro como Teodorico, dito o Raposão, constituem dois frutos podres da mesma árvore. Ou frutos apodrecidos nascidos de árvores distintas, mas de germinação extremamente parecida. Senão, vejamos. A fé não é, para nenhuma destas personagens, coisa séria, sequer vestígio de sincera adesão, ou simpatia do passado. Um e outro formam o que de pior poderia florescer – a única forma de vida possível, realmente –, quando a religiosidade é de extremos e impelida pelos mais insinceros motivos. Como é óbvio, e será muito mais, a quem ler o romance, Amaro não enveredou pela via eclesiástica por nenhuma espécie de vocação. Mas, por outro lado, também não decidiram por ele levados pelos melhores motivos.

«A senhora marquesa resolvera desde logo fazer entrar Amaro na vida eclesiástica. A sua figura amarelada e magrita pedia aquele destino recolhido: era já afeiçoado às coisas de capela, e o seu encanto era estar aninhado ao pé das mulheres, no calor das saias unidas, ouvindo falar de santas. A senhora marquesa não o quis mandar ao colégio porque receava a impiedade dos tempos, e as camaradagens imorais. O capelão da casa ensinava-lhe o latim, e a filha mais velha, a Sra. D. Luísa, que tinha um nariz de cavalete e lia Chateaubriand, dava-lhe lições de francês e de geografia.
Amaro era, como diziam os criados, um mosquinha-morta. Nunca brincava, nunca pulava ao sol. Se à tarde acompanhava a senhora marquesa às alamedas da quinta, quando ela descia pelo braço do padre Liset ou do respeitoso procurador Freitas, ia a seu lado, mono, muito encolhido, torcendo com as mãos húmidas o forro das algibeiras – vagamente assustado das espessuras de arvoredos e do vigor das relvas altas.» (O Crime do Padre Amaro, Livros do Brasil, p.40).

É fácil perceber como a decisão de encaminhar o jovem para a Igreja foi gerada pelas piores motivações. Será logo óbvio como nenhuma delas é das que se poderiam esperar, que todas consistem em sinais terrivelmente terrenos, profanos, que se adequam na perfeição à superficialidade de todo o processo em curso. A caracterização, além de obviamente negativa, ou mesmo caricatural, faz-se, quase toda, pelo exterior. Porque, afinal, esta religião é de fachada. É uma «figura amarelada e magrita», aquela que «pedia aquele destino recolhido», porque estava, muito singelamente, «afeiçoado às coisas de capela»; às «coisas», nem mais, e nada mais terreno, nada mais fútil. E, desde logo, quem o queria ver regalado, era «aninhado ao pé das mulheres, no calor das saias unidas, ouvindo falar de santas», lugar do texto e da evocação de realidade onde o feminino, e uma vez mais a profanidade, tomam a dianteira, prevalecendo sobre qualquer aspecto «metafísico». Esta «mosquinha-morta», que faz irresistivelmente lembrar Pedro da Maia, para quem não tenha lido só os resumos, ou os apontamentos de colegas mais generoso(a)s, «nunca brincava, nunca pulava ao sol». E, finalmente, autêntico protótipo do futuro Pedrinho da sua mãe, e da mais torpe (por falsa) religiosidade, «muito encolhido, torcendo com as mãos húmidas o forro das algibeiras – vagamente assustado das espessuras de arvoredos e do vigor das relvas altas.»
Em A Relíquia, tudo são aparências, gesto, teatralidade, numa palavra: fingimentos. Raposo, o Raposão, é o modelo perfeito do falso religioso. Nada poderia, de resto, ser-lhe mais alheio do que a religião.

«Não fiz o sinal da cruz. Mas entreabri a cortina; e o oratório da Titi deslumbrou-me, prodigiosamente. Era todo revestido de seda roxa, com painéis enternecedores em caixilhos floridos, contando os trabalhos do Senhor; as rendas da toalha do altar roçavam o chão tapetado; os santos de marfim e de madeira, com auréolas lustrosas, viviam num bosque de violetas e de camélias vermelhas. A luz das velas de cera fazia brilhar duas salvas nobres de prata, encostadas à parede, em repouso, como broquéis de santidade; e erguido na sua cruz de pau-preto, sob um dossel, Nosso Senhor Jesus Cristo era todo de ouro, e reluzia.
Cheguei-me devagar até junto da almofada de veludo verde, pousada diante do altar, cavada pelos piedosos joelhos da Titi. Ergui para Jesus crucificado os meus lindos olhos negros. E fiquei pensando que no céu os anjos, os santos, Nossa Senhora e o Pai de todos, deviam ser assim, de ouro, cravejados talvez de pedras; o seu brilho formava a luz do dia; e as estrelas eram os pontos mais vivos do metal precioso, transparecendo através dos véus negros, em que os embrulhava à noite, para dormirem, o carinho beato dos homens.» (A Relíquia, p.22)

Uma vez mais, a fé nunca será uma questão que consiga ultrapassar o mais palpável, ou mesmo sórdido. Tudo manifestação de exterioridade, do princípio ao fim. Porque não fez Raposão o sinal da cruz? Pois, obviamente, porque ninguém estava a vê-lo, além do leitor. E é óbvio que tudo quanto lhe importa, e à economia da narrativa, fica à superfície, como sucede a Amaro: «a cortina», «o oratório da Titi», com o seu revestimento «a seda roxa, com painéis enternecedores em caixilhos floridos», mais «as rendas da toalha do altar», e «os santos», notados, exclusivamente, pela sua materialidade de «marfim», «madeira» e «auréolas lustrosas»: em cenário de «camélias vermelhas». Tudo são decorações e arranjos: «almofada de veludo verde», e mesmo as cortes celestes são «de ouro, cravejados talvez de pedras».
Mas Amaro não ficava muito longe desta concepção, meio idiota, da religião e da fé:

«Aos onze anos ajudava à missa, e aos sábados limpava a capela. Era o seu melhor dia; fechava-se por dentro, colocava os santos em plena luz em cima duma mesa, beijando-os com ternuras devotas e satisfações gulosas; e toda a manhã, muito atarefado, cantarolando o Santíssimo, ia tirando a traça dos vestidos das Virgens e limpando com gesso e cré as auréolas dos Mártires.» (O Crime do Padre Amaro, p.41)

É especialmente relevante o par nome + adjectivo formado por «ternuras devotas e satisfações gulosas». Porque é de gula e de um afecto descabido que aqui se tratará. E o que vai ser a relíquia do título senão um deslize que provém de uma ternura mal posicionada? E fatalmente descoberta, quando devia ficar em segredo. Quer fosse castigo divino, quer fosse a necessidade do determinismo, foi por ternura que Raposão deitou tudo a perder. Mas dizer mais do que isso seria estragar a leitura de quem chegar a fazê-la, ou a refazer esse percurso.
A já falada prevalência dos objectos sobre o que não deveria ser material é constante que vai marcando, quer um, quer o outro livro. Por exemplo, agora em O Crime do Padre Amaro: «Amélia saltou da cama, correu à janela em camisa, ergue uma pontinha da cortina de cassa, olhou. A manhã resplandecia: e o padre Amaro pelo meio da rua conversando com o cónego, assoava-se ao se lenço branco, muito airoso na sua batina de pano fino.» (p.103) Tudo neste breve quadro está errado. A personagem está, desde logo, na «cama», embora nada de notório se passe naquela peça de mobiliário, por enquanto: o móvel apenas concorre para a faceta unicamente física do todo. Depois, é a «janela», a «camisa» da jovem, a «cortina de cassa», e o padre Amaro, logo notado por assoar-se com um «lenço branco, muito airoso na sua batina de pano fino». E tudo são superfícies, tecidos, materiais, coisas.
Verdade seja dita: nem Amaro, nem Raposão, estão sozinhos na torpeza. E, como é evidente, não surgiram do nada. O terreno fértil de que floriram é que permitia muitas formações deste género. Desde logo, os representantes do poder eclesial, descritos por Eça sem qualquer piedade, vestígo claro de um anticlericalismo que o autor nunca terá perdido desde os seus tempos de iconoclasta jornalista, ainda antes de se aventurar no romance.

«A quinta-feira era o desagradável dia de lavarmos os pés. E três vezes por semana o sebento Padre Soares vinha, de palito na boca, interrogar-nos em doutrina e contar-nos a vida do Senhor.
– Ora, depois pegaram, e levaram-no de rastos a casa de Caifás… Olá, o da pontinha do banco, quem era Caifás?… Emende! Emende adiante!… Também não! Irra, cabeçudos! Era um judeu e dos piores… Ora diz que, lá num sítio muito feio da Judéia, há uma árvore toda de espinhos, que émesmo de arrepiar…
A sineta do recreio tocava; todos, a um tempo e de estalo, fechávamos a cartilha.
O tristonho pátio de recreio, areado com saibro, cheirava mal por causa da vizinhança das latrinas; e o regalo para os mais crescidos era tirar uma fumaça do cigarro, às escondidas, numa sala térrea onde aos domingos o mestre de dança, o velho Cavinetti, frisado e de sapatinhos decotados, nos ensinava mazurcas. » (A Relíquia, p.24)

Realmente, é difícil saber por qual destes males começar. Falta de higiene, ignorância bruta do mestre, insalubridade? O todo, decerto. Porque tudo aqui deveria ser, naturalmente, de outro modo. Nada havia de ficar como está. Nem será preciso dizer que nada disto tem que ver com fé, nem da parte de quem deveria estar a partilhá-la, ou pregá-la, nem do lado de quem é receptáculo de tão reles emissão. O «sebento Padre Soares», com o seu «palito na boca», deverá lembrar, mas, uma vez mais, apenas para os da leitura, não para os dos apontamentos, ou resumos, certo trecho de Os Maias. De tal forma que devem ter sido talhados de molde igual, os dois clérigos, lá na oficina de Eça.

«- Quantos são os inimigos da alma?
E o pequeno, mais dormente, lá ia murmurando:
-Três. Mundo, Diabo e Carne…
Pobre Pedrinho! Inimigo da sua alma só havia ali o reverendo Vasques, obeso e sórdido, arrotando do fundo da sua poltrona, com o lenço do rapé sobre o joelho…» (Os Maias)

Como se perceberá, entre «palito» e «arroto», o que muda é muito pouco; nem sequer a proveniência. Dois representantes indignos de uma classe quase nunca, ou nunca, apresentada sob lente positiva. Ou seja, entre Soares e Vasques, a única diferença é mesmo o apelido. Educados, formados nesta forja de estupidez e falsidade, não admira que Amaro e Raposão saíssem dois refinados patifes. Ou, simplesmente, dois pobres diabos, sem ponta por onde se lhes pegasse. Os seus pecados eram a crendice que lhes tinham incutido, a falsidade com que lhes ensinaram os credos, a falta de honestidade dos que estavam à frente da instituição que os criou. Por isso, pouco admira que Raposão assim descreva a sua entrada no Santo Sepulcro. Nem aqui ele se sentiu compelido a sentir o fenómeno da fé como alguma coisa de real, ou que transcendesse a banal materialidade de tudo.

«tive de esmurrar um malandrão de barbas de eremita, que se dependurara da minha rabona, faminto, rábido, ganindo que lhe comprássemos boquilhas feitas de um pedaço da arca de Noé!
– Irra, caramba, larga-me, animal!
E foi assim, praguejando, que me precipitei, com o guarda-chuva a pingar, dentro do santuário sublime onde a cristandade guarda o túmulo do seu Cristo. Mas logo estaquei, surpreendido, sentindo um delicioso e grato aroma de tabaco da Síria. Num amplo estrado, afofado em divã, com tapetes da Caramânia e velhas almofadas de seda, reclinavam-se três turcos, barbudos e graves, fumando longos cachimbos de cerejeira. Tinham dependurado na parede as suas armas. O chão estava negro dos seus escarros. E, diante, um servo em farrapos esperava, com uma taça fumegante de café, na palma de cada mão.» (A Relíquia, p.106)

E é claro que, nem Amélia, nem Amaro – e logo o Padre Amaro, que, por inerência de funções, tinha outras responsabilidades –, afinam por diapasão muito melhor, mesmo diante da solenidade de um templo. Porque, afinal, todos eles vêm do mesmo fundo de religião oca e sem sentido. De crendice, muito mais do que fé, de medo, e não de afecto, ou de mistério.

«Ao entrar na igreja não rezava, com medo dos santos.
Corria para a sacristia para se refugiar em Amaro, abrigar-se à autoridade sagrada da sua batina. Ele então, vendo-a chegar tão pálida e tão transtornada, galhofava para a tranquilizar. Não, era uma tolice, se iam agora estragar o regalozinho daquelas manhãs, porque havia uma doida na casa! Prometera-lhe de resto procurar outro sítio para se verem; e mesmo com o fim de a distrair, aproveitando a solidão da sacristia, mostrava-lhe às vezes os paramentos, os cálices, as vestimentas, procurando interessá-la por um frontal novo ou por uma antiga renda de sobrepeliz, provando-lhe, pela familiaridade com que tocava nas relíquias, que era ainda o senhor pároco e não perdera o seu crédito no Céu.
Foi assim que uma manhã lhe fez ver uma capa de Nossa Senhora, que havia dias chegara de presente duma devota rica de Ourém. Amélia admirou-a muito. Era de cetim azul, representando um firmamento, com estrelas bordadas, e um centro, de lavor rico, onde flamejava um coração de ouro cercado de rosas de ouro. Amaro desdobrara-a, fazendo cintilar junto da janela os bordados espessos.
— Rica obra, hem? Centos de mil réis… Experimentámo-la ontem na imagem… Vai-lhe como um brinco. Um bocadito comprida, talvez… — E olhando Amélia, numa comparação da sua alta estatura com a figura atarracada da imagem da Senhora: — A ti é que te havia de ficar bem. Deixa ver…
Ela recuou:
— Não, credo, que pecado!
— Tolice! — disse ele adiantando-se com a capa aberta, mostrando o forro de cetim branco, duma alvura de nuvem matutina. — Não está benzida… É como se viesse da modista.
— Não, não — dizia ela frouxamente, com os olhos já 1uzidios de desejo. Ele então zangou-se. Queria talvez saber melhor do que ele o que era pecado, não? Vinha agora a menina ensinar-lhe o respeito que se deve aos vestuários dos santos?
— Ora não seja tola. Deixe ver.
Pôs-lha aos ombros, apertou-lhe sobre o peito o fecho de prata lavrada. E afastou-se para a contemplar toda envolvida no manto, assustada e imóvel, com um sorriso cálido de gozo devoto.
— Oh, filhinha, que linda que ficas!
Ela então, movendo-se com uma cautela solene, chegou-se ao espelho da sacristia — um antigo espelho de reflexo esverdeado, com um caixilho negro de carvalho lavrado, tendo no topo uma cruz. Mirou-se um momento, naquela seda azul-celeste que a envolvia toda, picada do brilho agudo das estrelas, com uma magnção.ificência sideral. Sentia-lhe o peso rico. A santidade que o manto adquirira no contato com os ombros da imagem penetrava-a duma vo1uptuosidade beata. Um fluido mais doce que o ar da terra envolvia-a, fazia-lhe passar no corpo a carícia do éter do Paraíso. Parecia-lhe ser uma santa no andor, ou mais alto, no Céu…
Amaro babava-se para ela:
— Oh, filhinha, és mais linda que Nossa Senhora!» (p.374)

A citação, demasiado longa, serve apenas para melhor dizer o que vai mal neste reino. Que é, definitivamente, deste mundo. Porque, do outro, nem vislumbre. Tudo se resume, uma vez mais, a trapos e vaidades, exibição e orgulhos inflamados.
O Crime do Padre Amaro e A Relíquia são dois retratos inclementes de uma realidade traçada com verosimilhança e verismo impecáveis. No primeiro caso, o meio mais pequeno de Leiria ressalta em toda a sua pequenez, na minúcia de um quadro de mínimos pormenores; no outro, o microcosmos de uma Lisboa beata e bafienta, parece mais pequeno, devido à focagem concentrada de Eça, que capta os contrastes flagrantes com um mundo profano, de pequena boémia. Em qualquer um dos casos, leituras obrigatórias. Sobretudo para quem já não está em idade de ler livros por obrigação.

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