Antes do comentário a esta obra de Joël Dicker, cumpre fazer o disclaimer: começámos a leitura do O Desaparecimento de Stephanie Mailer (Alfaguara, 2018) com a resignação de quem não é, nem nunca foi, uma leitora ávida e especialmente fã de policiais. Caindo, possivelmente, no cliché que o próprio autor, a certo momento da obra, identifica e realça, os romances policiais sempre foram aqueles que lemos em último lugar, possivelmente com um certo menosprezo em face de outros géneros literários que consideramos mais densos, mais profundos, mais reflexivos. Por isso nos sentimos quase “apanhados” quando, já em plena trama, uma das personagens explica: “na ordem do respeito que se concede aos géneros literários, à cabeça vem o romance incompreensível, depois o romance intelectual, depois o romance histórico, depois o romance que é só romance e, só depois disso, em penúltimo, mesmo antes do romance cor-de-rosa, é que surge o romance policial.”
Também por isso, foi com alguma satisfação que vimos as nossas resistências ultrapassadas e vencidas por um livro extremamente fluído, de escrita vívida e descrição bastante consistente das personagens que nos vão aparecendo. Os inspetores policiais Jesse e Derek, o editor Steven Bergdoff, a agente Anna Kanner e a jovem Dakota, são exemplos de boa composição de caráter e descrição de percurso de vida, de tal modo que podemos, a partir de certa altura, prever e compreender as suas ações, reações e emoções.
Um pouco exageradas, talvez pela intenção de realçar a ferocidade do ego do primeiro e o desvario pela fama e glória do segundo, são as personagens do crítico literário Meta Ostrovsky e do frustrado Kirk Harvey, descompondo um pouco o quadro de equilíbrio e profundamente verosímil dos demais participantes desta estória.
Resultam muito bem as analepses constantes ao ano de 1994, que adensam a história e permitem compreender o percurso dos vários “atores” desta trama. A leitura não é, por isso, menos escorreita e leve. Antes resulta mais densa do que em muitas obras do género, mas sem que, com isso, se comprometa a capacidade de termos, neste livro, uma boa companhia de Verão.
Destacamos, ainda, a naturalidade e discrição, sinal da inteligência do autor, com que se abordam temas tão diversos como o adultério, o consumo de drogas e até o bullying informático. Parece muita coisa numa obra só, mas a verdade é que não sentimos o “peso” destes dramas pessoais, dada a forma e a cadência com que nos vão sendo expostos. O medo da “Noite Escura”, que nos invade quando se aproxima a data de estreia da peça de teatro em que tudo pode acontecer e ser revelado, vai sendo mitigado com episódios da vida quotidiana das personagens.
Quase como num filme, em que a uma cena dramática se segue um episódio divertido, em abono da tranquilização do espetador, Dicker tem a preocupação de, episodicamente, acalmar o leitor, como acontece quando, num agradável e inesperado registo cómico, nos dá a conhecer os avós de Jesse, mitigando algum desconforto causado pela “cena” anterior. São personagens inconsequentes, dir-se-á, sem um propósito. Talvez. Mas tendemos a considerar o seu aparecimento como uma forma de gerar um sorriso, depois de uma certa angústia.
Joël Dicker é um jovem escritor suíço, nascido em 1985 e licenciado em direito, que tem demonstrado não ser apenas um “fenómeno de bilheteira”, vencedor de renomados prémios literários, como o prémio de melhor romance da Academia Francesa de Letras.
É, se não mais do que isso, capaz de criar um enredo que cativa e envolve, aguçando a nossa curiosidade de leitor-investigador, em busca do responsável pelo quádruplo assassinato que dá mote ao livro.
Apesar de se tratar de uma obra extensa, as suas centenas de páginas não nos desmotivaram e, se não nos tornaram entusiastas de policiais, tiveram a virtualidade de nos aguçar a curiosidade, dando-nos, quiçá, uma oportunidade para maior conhecimento deste autor e deste género literário.
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