O Diabo Foi Meu Padeiro, o mais recente romance de Mário Lúcio Sousa, conta as histórias dos presos políticos enviados para o Campo de Concentração do Tarrafal, ou Colónia Penal do Tarrafal, ou ainda o eufemístico Campo de Trabalho do Tarrafal.
A propósito dos 45 anos de encerramento daquele local, a obra, dividida em quatro partes – portuguesa, guineense, angolana e cabo-verdiana- conta-nos diversos momentos deste campo, sempre pela voz de um Pedro: os portugueses Pedro Santos Soares e Pedro José da Conceição, os angolanos Pedro Benge e Pedro Chimbinda, o guineense Pedro Mancanha e o cabo-verdiano Pedro Rolando dos Reis Martins. Cada parte está, por isso, escrita com a linguagem adaptada a cada uma destas línguas, como o capítulo cabo-verdiano, onde reconhecemos expressões crioulas ou o capítulo guineense, onde se reconhece a origem deste mesmo crioulo. É pelos olhos e boca deste homens que vamos tomando conhecimento do que se passou no Tarrafal, do que se viveu entre aqueles muros: da comida que faltava, da água podre, dos trabalhos forçados, das doenças, das torturas, da famigerada “frigideira”, dos presos que adoeciam, que eram libertados, que morriam ou enlouqueciam devido às torturas.
A incredulidade, a vergonha, o horror, a tristeza e a revolta vão tomando conta de nós, à medida que vamos seguindo estes episódios, sobretudo por sabermos que eles fazem parte da pior fase da nossa História: a ditadura do Estado Novo.
Este é um daqueles livros que precisa de muitas pausas durante a leitura, porque tudo o que nos oferece vem carregado de tanta dor que é difícil para nós, crescidos em liberdade, compreender a dimensão do que aqui se descreve. Mas é também aqui que descobrimos a lealdade e a amizade que pode existir entre os homens, um outro sentido para a palavra esperança. Há sempre um plano de fuga a correr, uma tentativa de ter uma vida “normal”, como o preso que fingia dores de barriga só para poder ir à enfermaria e descrever o que via pelo caminho aos seus companheiros, ou como o cão Pirão, fiel seguidor de Bento Gonçalves, “o cão nosso de cada dia, nosso único companheiro livre”. Mário Lúcio Sousa tem ainda o condão de conseguir descrever o mais horrível dos episódios, como a descrição da “frigideira”, com uma linguagem quase poética. Não é seca ou crua, antes como a descrição de um sonho que afinal é um pesadelo. “Depois de sete horas, avistámos uma linda baía, um paraíso que nos deixou desnorteados, porque sabíamos que o Tarrafal é um inferno.”
Aberto em 1936, recebeu logo nesse ano 150 portugueses, entre eles, Edmundo Pedro, com 16 anos, o preso político mais novo no campo do Tarrafal. Fecharia em 1954, para reabrir na década de 60, desta vez para acolher os presos políticos das ex-colónias. Este não é um simples romance, porque as histórias que conta são reais e estas personagens foram homens como nós, com família, amigos, sonhos e perdas. É, por isso, um romance obrigatório, para não deixar no cair no esquecimento o mais negro episódio da ditadura portuguesa.
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