home Antologia, LITERATURA, TEATRO O Espaço Vazio – Peter Brook (Orfeu Negro, 2016)

O Espaço Vazio – Peter Brook (Orfeu Negro, 2016)

Sempre que o artista decide falar da sua arte, os resultados são desapontantes. Quando pouco disposto a autopsicografar-se ou fingir fazê-lo, esconde esse desconforto numa linguagem científica e demasiado objectiva ou inventa uma narrativa repleta de banalidades. No outro extremo, a motivação e descontracção são tantas que o livro resvala para a irrelevância e a mundanidade. O Espaço Vazio é a saudável excepção e lê-lo num português sem mácula (excelente trabalho de Rui Lopes) um privilégio. Peter Brook tenta um malabarismo entre a sua experiência pessoal e a delimitação dos critérios mínimos para que determinado espectáculo possa ser chamado de Teatro. A capacidade inata de contar histórias e o seu imenso conhecimento e sentido de humor tornam a leitura obrigatória para quem ama a Arte e tem curiosidade em saber como se concretiza.
Fugindo da condescendência e paternalismo habituais a alguém com a sua carreira (embora a espaços, sacrifique o rigor em favor da comprovação da sua verdade de encenador/dramaturgo), Brook identifica dilemas e dificuldades e aponta caminhos para os contornar, exemplificando com a sua prática, ao invés de ditar regras, consciente de que este tipo de literatura é efémera (tal como a arte dramática) e a experimentação essencial à auto-descoberta e excelência. Afinal, “A verdade do teatro está sempre em movimento” e O Espaço Vazio foi publicado originalmente em 1968, o que não deixa de ser surpreendente, pela sua pertinência e actualidade.
Para organizar o raciocínio, Brook divide o livro em quatro capítulos, deixando o último para a defesa do “seu” teatro: o Teatro Imediato. Nos restantes, encontramos o teatro a evitar todo o custo – o Teatro do Aborrecimento Mortal – e o que idealmente se deve incluir em porções moderadas em cada récita – o Teatro Sagrado (mais ligado à espiritualidade e ao invisível) e o Teatro Bruto (próximo das pessoas, com o estilo em lugar secundário face à eficácia das cenas). As referências “sagradas” estão todas lá: Shakespeare, Genet, Artaud, Brecht, Stanislavsky, Meyerhold ou Beckett. Depois temos as derivações e inovações: Grotowski, Weiss, Pinter ou Arden. Mas o “namedropping” (há sinónimo em português para isto?) não é inconsequente, antes reforça ideais e demonstra a realidade dos palcos, a sua variação perante o contexto sócio-económico e político e, de forma destacada, conforme o público, incógnita fundamental na equação de resultado desconhecido e renovado que é o Teatro. «Se o bom teatro depende de um bom público, então cada público tem o teatro que merece. No entanto, os espectadores não aceitarão essa responsabilidade. Como é que se pode pôr isto em prática? O dia em que as pessoas forem ao teatro para cumprir um dever será um triste dia. (…) Nem certo sentido, não há mesmo nada que um espectador possa fazer; e ao mesmo tempo, há aqui uma contradição, porque tudo depende dele.» Estes aparentes choques alimentam a argumentação de Brook, que os abraça e encara, apontando o dedo para rir, mas também para lamentar e apresentar algumas alternativas interessantes.
Brook acaba por apresentar um teste infalível à qualidade de uma peça de teatro, cativante pelo que tem de senso comum: “Quando um espectáculo acaba, o que é que sobra? A diversão pode ser esquecida, mas a emoção forte também desaparece e os argumentos perdem o seu encadeamento. Quando a emoção e os argumentos estão presos a um desejo do público de ver mais claramente o que está dentro de si mesmo, então há qualquer coisa que se acende na mente. O acontecimento deixa na memória um rasto de um esboço, de um gosto, de um traço, de um cheiro – de uma imagem. É a imagem central da peça que permanece, a sua silhueta, e se os elementos estiverem bem misturados, esta silhueta será o seu significado, esta forma será a essência daquilo que ela tem para dizer.”

Repetição, representação e assistência são os três elementos essenciais do Teatro, coincidentes com as três fases da sua concretização. O primeiro refere-se ao “lado mecânico” do processo, tornar o texto e as marcações automáticos nas mentes do elenco. O segundo é um retomar do passado, quando algo que passou é recuperado, “aquilo que outrora foi volta a ser” negando o tempo, e o derradeiro – a assistência – é essencial “porque sem público não há objectivo nem sentido” e é ele o agente que converte a repetição em representação.
A actualidade da sua análise surpreende mas é também incómoda, porque apesar de identificar os elementos base do fenómeno teatral e fazer a ponte com os seus protagonistas e mestres, nos relembra que pouco ou nada mudou em décadas e nos convoca a sermos agentes da mudança que queremos ver nos palcos e fora deles, antes, durante e depois de cada récita. Se cada um fizer a sua parte é um bom começo.

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