home Antologia, LITERATURA O Futuro Por Contar – Ivan Krastev (Objectiva, 2020)

O Futuro Por Contar – Ivan Krastev (Objectiva, 2020)

“Em terra de cegos, quem tem olho é rei”. Seria o adágio adequado a esta obra, não fosse o acaso de o território das ciências humanas (e das sócio-políticas em particular) ser de relatividade intrínseca. Neste “longo ensaio”, como lhe chama Ivan Krastev, entitulado O Futuro Por Contar – Como a Pandemia Vai Mudar o Nosso Mundo, o risco de falhar é largamente compensado pela proposta apresentada. Em suma Krastev propõe-se “analisar a calamidade da COVID-19 como fenómeno novo, fundamentalmente diferente das três anteriores crises (31), [“o combate ao terrorismo, a crise dos refugiados e a crise financeira mundial” (96)], mas também “é um livro sobre a Europa”, onde a pandemia “terá o seu impacto político mais radical” (32) pois será “um desafio às fundações sobre as quais se ergue (…) nomeadamente que a interdependência é a fonte mais fiável de segurança e prosperidade” (32). Mas o âmago desta curta dissertação é a afirmação categórica de que “a COVID-19 mudará o nosso mundo de formas profundas (…) não porque as sociedades assim o desejem ou por haver consenso quanto à direcção da mudança, mas porque não será possível voltar atrás.” (16)
Por não arriscar prognósticos, excepto em situações em que se tornam óbvios, o politólogo alarga a análise a ambos os lados de diversas barricadas, explorando sete paradoxos que o capitulo final concretiza de forma directa e concisa. Todos se afiguram certeiros e inconciliáveis, com consequências diametralmente opostas entre o sucesso e o descalabro global.
Apesar de diversas previsões, o Mundo foi apanhado em contrapé, tal como em eventos históricos similares no passado, como a gripe espanhola de há mais de um século atrás, cujas consequências devastadoras (500 milhões de infectados e entre 50 e 100 milhões de mortos) não evitaram que fosse suplantada, na memória colectiva e dos cientistas, pela contemporânea Primeira Guerra Mundial (17 milhões) e pela posterior Segunda Guerra Mundial (60 milhões de mortos). “quando se pergunta qual a maior catástrofe do Séc. XX, quase ninguém responde a gripe espanhola” (11). As razões são elencadas: dificuldade de uma contagem eficaz dos infectados e dos óbitos (se ainda hoje assim é, imagine-se há mais de um século atrás), dificuldade em transformar o fenómeno numa narrativa (já que o seu início é desconhecido e “falta-lhe um enredo claro” (13)] e a “aversão genérica à morte e sofrimento aleatórios” (13), já que as mortes não trazem consigo um sentido heróico ou patriótico como na guerra.

Mas foquemo-nos nos paradoxos centrais ao ensaio, amplificados pela COVID-19. O primeiro denota o facto de a pandemia actuar simultaneamente como potenciadora da globalização e expor as suas fragilidades, ao sincronizar o Mundo como nunca e castigar com vigor zonas onde essa tendência é dominante, ou seja, locais “de grande densidade populacional e ligados por transporte aéreo rápido, por movimentos de turistas, refugiados , toda a espécie de negociantes e redes interligadas “ (93) O segundo paradoxo é ter demonstrado os limites da renacionalização, enquanto acelerou a desglobalização iniciada na crise de 2008/9, com a prevalência actual da “imagem de um Estado forte, capaz de prover a sociedade de todos os produtos necessários numa crise.” e a necessidade de concertação internacional para vencer a pandemia. Outro paradoxo essencial é ter gerado uma grande união nacional em muitas sociedades, adensado as divergências políticas, que se acentuarão a seu tempo tempo, com a própria COVID-19 a funcionar como “linha divisória” e os países que melhor contiverem o vírus forçados a encarar a crítica interna pelas medidas de confinamento.
Um dos paradoxos essenciais está no facto de o vírus “ter deixado a democracia em pausa (…) mas, ao fazê-lo, ter limitado o desejo de um governo mais autoritário.” (95), porque os povos sentiram na pele a limitação das liberdades fundamentais.
Os três derradeiros paradoxos envolvem a Europa e o projecto único da União Europeia, cuja importância já afloramos inicialmente. Uma das crises em potência, é a resposta ao teste poderoso colocado à resistência da Europa como projecto político, apesar de EU ter estado ausente numa primeira fase da crise. Por outro lado, embora a crise pandémica tenha ressuscitado medos presentes nas três crises referidas, a resposta da UE foi a oposta. O surgimento da pandemia veio pôr em questão a protecção de dados pessoais e privacidade, que foi protegida na altura do combate ao terrorismo no território da UE. Por outro lado, o debate acerca da abertura de fronteiras europeias aos refugiados mudou totalmente, com a concretização do seu encerramento temporário no interior da EU sem que tal significasse a derrota dos países da Europa de Leste, assim como os voos para transporte de trabalhadores sazonais do Leste para França, Alemanha e Reino Unido, que “alteraram dramaticamente a natureza do debate”. Por fim, apesar da “abertura e interdepedências reinantes na EU”, a globalização poderá forçar medidas de centralização e delegação de poderes e aumentos significativo de políticas comuns, com a consequente necessidade de, a médio prazo, calibrar o equilíbrio de forças entre as nações da UE e as suas instituições.
Numa retrospectiva possível desta crise pandémica, é notória a tendência para o cosmopolitismo massivo, mediado pelas tecnologias e a individualização forçada das experiências, acompanhado pelo ressurgimento de tendências isolacionistas e nacionalistas, principalmente quanto a bens de primeira necessidade, antagónicas à anterior globalização. Desta paz podre, para já mantida pela resistência da COVID-19, resultará necessariamente uma alteração da vida tal como a conhecemos. Resta descortinar como reagiremos a essa inevitabilidade e quais as consequências dessa adaptação.
Temporariamente cegos pela surpresa do impensável confinamento e racionamento de liberdades e direitos fundamentais, será rei quem se mostre capaz de agir em concertação com o os outros, individual e globalmente, não só na destruição do vírus, como na prevenção e luta contra os seus efeitos económicos e sociais catastróficos, informando e preparando as gerações vindouras para a inevitabilidade da repetição da história, caso os equilíbrios entre o individual e o colectivo, o nacional e o global, o humano e a Natureza, não sejam repostos e mantidos, pela sobrevivência da espécie humana e da democracia, “a pior forma de governo, à excepção de todas as outras tentadas de tempos a tempos”, como notou Churchill.
Um livro inteligente, informativo e ultra actual, para memória futura.

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