Às páginas tantas, no ano da sua morte, Ricardo Reis passeia-se por Lisboa guiado por Saramago e por uma estranha curiosidade pela vida de dois hóspedes conimbricenses alojados no Hotel Bragança, onde também residia, ali pela Rua do Alecrim. Curioso, decide seguir os planos dos desconhecidos, e ir também ao Teatro Nacional D. Maria II. Afinal de contas, “provincianos que vêm a Lisboa (…) aproveitam para irem ao teatro (…) e, sendo gente de gosto fino, invariavelmente ao D. Maria, também chamado Nacional”. O Nacional era uma instituição onde homens fumavam cigarros e charutos, trocavam opiniões e cumprimentavam conhecidos, isto é, onde se ia “para ver e ser visto”. Ricardo Reis ali foi visto a assistir a Tá Mar, de Alfredo Cortez. Mas que pensaria o médico se pudesse vir ao futuro, oitenta e poucos anos depois, e visse o amplo palco da Sala Garrett transformado numa espécie de rave techno-científica, psicadélica e extasiante? Que aconteceu ao gosto fino que celebrava a mulheres nazarenas? Cruzar tempos, baralhá-los e espremê-los, foi o desafio que Gonçalo Waddington propôs com a sua tetralogia O nosso desporto favorito. O Futuro Próximo é a terceira parte desta farsa trágico-cómica, que trata da evolução da espécie, trazendo a cena as mesmas personagens que começaram a saga. Velhas e revoltadas, elas refletem sobre o que lhes aconteceu. O seu fim será uma comédia ou uma tragédia? E o nosso?
As personagens vivem numa espécie de bunker de seita científica decadente, tendo perdido o seu pastor e já não sabendo por onde rebanhar, ou, na verdade, se alguma utilidade haverá em se desviarem do abismo para onde foram encaminhadas. Tal como o seu líder, vivem entre a realidade e a sua representação, daí que a imaginação seja um elemento tão decisivo da narrativa. Como diz Waddington, recuperando Carlo Rovelli, a filosofia ou a ciência são um ato de imaginar as coisas antes de serem produzidas. É o mesmo que Marx dizia, mas antes para falar da humanidade e não apenas de filósofos ou cientistas. Na sua metáfora sobre a natureza humana diz ele: “Uma aranha desempenha actividades parecidas com um tecelão e uma abelha deixa muitos arquitectos humanos vermelhos de vergonha. Mas o que distingue de forma essencial o pior arquitecto da melhor abelha é o facto que este construiu primeiro o alvéolo na sua cabeça, antes de o construir em cera”.
Por isso, se poderia dizer que também a arte pode ser essa imaginação de alvéolo, completamente imprevisível, potencialmente implausível. No exemplo de Waddington, imaginação que se faz ato – e que, portanto, é performática – tanto pode ser a de quem olha o céu e imagina nele poder voar, como de quem imagina o papel higiénico antes de o usar para limpar o rabo. Um teatro que recupera essa força da imaginação é, antes de mais, ato de resistência perante quem tudo aposta na arte política da conformação.
Neste seu futuro próximo imaginado, vive-se num labirinto de (a)moralidade. Tudo e o seu contrário podem ser certo ou errado. Uma personagem insulta o seu marido da forma mais escatológica que consegue, enquanto este berra para que a deixem continuar. Discute-se a possibilidade de se beber chá com um violador de uma filha, perante a inevitabilidade de tal ato ocorrer. Que padrões morais usar, afinal, quando as consequências da ação não se projetam mais que num futuro próximo que poderá ser o do abismo?
Na antecâmara para o abismo, tudo se pensa: como acabar uma vida que foi desperdiçada numa farsa? Como é que, perante o confronto com o fim, se lida com o facto de podermos ter feito a aposta errada? Termos apostado na seita errada? No líder errado? No deus errado? Na profissão errada? Nos livros errados? Nas relações erradas? Nos prazeres errados? Como é que se aprende a lidar com o desaparecimento do pastor que sempre nos guiou no caminho da pradaria? Como lidar com a consciência de que estivemos apostados em viver uma mentira? O mesmo tipo de mentira de que os atores se convencem, diz-nos Waddington, quando querem corresponder ao desafio de um criador e tudo fazem para acreditar na sua criação. Quem segue e quem é seguido? Quem guia e quem é guiado? E se o nosso deus ex-machina se torna um decadente cientista que, assolado de certezas, se esquece de criar um antídoto capaz de lhe controlar as ereções depois da morte?
O que é certo, na verdade, é que nos intervalos dessa caminhada em direção a um futuro próximo, ninguém deixa ser e estar ativo. Ninguém deixa de cantar, porque mesmo perante o abismo, e mesmo sem pastor, permanece numa libido descontrolada, uma fisicalidade libidinosa, um desejo permanente que é combustível. E ali estão eles, com a sua linguagem vernacular e obscena, carregada de elegância na melhor tradição, como também lembra Waddington, de um João César Monteiro que conversa com Manuela de Freitas sobre sexo oral à porta do parlamento, mas sempre, sempre, acompanhado das mais requintadas bandas sonoras.
Que diria, perguntava eu, Ricardo Reis, desta imaginação vernacular e cáustica no palco do Teatro Nacional D. Maria II? É difícil saber. Talvez se juntasse à festa, talvez fosse encontrar-se com Marcenda no recato de uma galeria. O que sabemos, porém, é que ir ao Teatro Nacional D. Maria II é hoje um prazer, pelos cruzamentos de tempos, gerações, linguagens, diálogos e práticas estéticas e políticas. Mérito, sem dúvida, do seu diretor artístico e de quem o acompanha, que perceberam que o teatro não é para gente fina, é para ter gente dentro. Merecida distinção a do Prémio Pessoa 2019, que dedicou aos seus colegas e às dificuldades por que passam. Muito obrigado Tiago, se me estiveres a ler, que enquanto espectador me sinto livre no teatro que diriges.
Ficha Técnica
Texto e encenação de Gonçalo Waddington
com Carla Bolito, Carla Maciel, Gonçalo Waddington, Teresa Sobral, Tónan Quito
Cenografia e figurinos: Ângela Rocha
Desenho de luz: Nuno Meira
Desenho de som: Miguel Lima
Caracterização: Rita Castro
Assistência de encenação: Carolina Cunha e Costa
Produção executiva: Nuno Pratas / Culturproject
Foto © Filipe Ferreira
Por defeito profissional, o João Mineiro escreve de acordo com o novo desacordo ortográfico.
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