Uma sala de interrogatório. Dois Inspectores ou duas Inspectoras estão em pé à frente de uma mesa com 3 cadeiras. Uma ou um deles tem um relatório na mão. Estão ambos a olhar para a entrada da sala do teatro. sentado/a numa secretária a folhear um relatório. Estão os dois em silêncio.
INSPECTOR 1
Já passou da hora, senhor Inspector. Tem a certeza que era hoje que chegava?
INSPECTOR 2
Sim, tenho a certeza. Porque não haveria de ter a certeza do que estou neste momento a fazer? Achas que estaria aqui que soubesse que ninguém iria entrar por aquela porta? Estamos à espera, se estamos à espera, temos de saber esperar e não pensar que nos enganamos no dia ou na hora.
INSPECTOR 1
Compreendo, senhor Inspector.
Faz-se silêncio por alguns momentos.
Os inspectores continuam a olhar para a porta da sala do teatro.
Tempo.
INSPECTOR 2
Olha… ouviste?
INSPECTOR 1
Olha para o INSPECTOR 2.
O quê?
INSPECTOR 2
Pouco barulho! Estás a ouvir?
INSPECTOR 1
Não estou a ouvir nada, senhor Inspector. O que é que está a ouvir?
INSPECTOR 2
Nunca ouves nada, é impressionante.
INSPECTOR 1
Não ouvi, estou a dizer-lhe a verdade. Não ouvi nada. Estava a falar da sua respiração?
INSPECTOR 2 Incompetente.
Tempo.
Continuam os dois a fitar a porta de entrada.
INSPECTOR 1
Agora ouvi qualquer coisa, sim. Acho que ouvi qualquer coisa.
INSPECTOR 2
Agora não houve nada para ouvir. Mas que encomenda!
INSPECTOR 1
Talvez tenha ouvido o que há pouco ouviu e eu não. Agora foi ao contrário. Eu ouvi, o senhor Inspector não ouviu. Acontece.
O Inspector 2 olha para o Inspector 1 sem lhe responder.
INSPECTOR 2
Estão a chegar. Leste o relatório?
INSPECTOR 1
Li o relatório, senhor Inspector.
Ouve-se o barulho da porta da sala do teatro a abrir. As luzes da plateia acendem-se.
INSPECTOR 2
Vês, eu não te disse! Aí vem ele.
Um Inspector traz consigo Sakamoto algemado.
INSPECTOR 3
Podemos entrar, senhor Inspector?
INSPECTOR 2
Entrem, entrem!
O Inspector 3 atravessa toda a sala e sobe ao palco.
INSPECTOR 3
Aqui tem! Foi encontrado a fugir da zona vigiada. Só sabe o seu nome.
INSPECTOR 1
Segundo o relatório: Sakamoto.
INSPECTOR 3 Exactamente.
INSPECTOR 2
Pode deixá-lo. Muito obrigado.
O Inspector 3 tira as algemas a Sakamoto.
INSPECTOR 2
Agora o trabalho é nosso. Pode ir.
O Inspector 3 desce do palco e atravessa a plateia até à porta da sala do teatro.
INSPECTOR 2
Pode desligar as luzes, obrigado!
As luzes da plateia desligam-se e a porta bate.
No palco, Sakamoto e os dois Inspectores estão sentados frente a frente. Sakamoto de costas para o público.
INSPECTOR 2
Agora estamos só nós. Sabe porque está aqui, não sabe?
SAKAMOTO
Penso que não, senhor Inspector.
INSPECTOR 2
Pensa que não? Não tem a certeza?
SAKAMOTO
Não tenho a certeza. Só me trouxeram até aqui, mais nada.
INSPECTOR 1
Não esteve por acaso na zona vigiada? A zona que está interdita às pessoas.
INSPECTOR 2
É claro que esteve. Se não tivesse estado não estaria aqui.
SAKAMOTO
Não sabia que era uma zona vigiada.
INSPECTOR 1
E as fitas? Não lhe pareceu estranho? As fitas a delinear a zona vigiada. Achava que era um jogo de crianças?
Sakamoto não responde.
INSPECTOR 2
A pergunta é muito simples: tem alguma coisa haver com o que aconteceu naquela cidade? É você o senhor que temos andado à procura e não conseguimos encontrar? Acredito que saiba do que estou a falar. Lê as noticias, certo?
SAKAMOTO
Não leio noticias, senhor.
O Inspector 1 ri-se.
INSPECTOR 2
O criminoso regressa sempre ao local do crime. Está nos livros. É você!
SAKAMOTO
É mentira.
INSPECTOR 2
Tem a certeza? Então porque é que fugiu?
SAKAMOTO
Tive medo e fugi. Só isso.
INSPECTOR 1
A mim não me convence, senhor Inspector. Temos aqui o homem procurado.
O Inspector 2 agarra no relatório e tira uma fotografia.
INSPECTOR 2
Conhece esta cara, senhor Sakamoto?
SAKAMOTO Demora algum tempo a responder.
Conheço-o.
INSPECTOR 1
Quem é ele, então?
SAKAMOTO
Um agente secreto. Pelo menos foi um agente secreto, hoje não sei dele. Nunca mais o vi.
INSPECTOR 2
Um agente secreto? Ou não será um terrorista?
SAKAMOTO
Conheci-o como agente secreto.
INSPECTOR 2
Levanta-se e agarra na fotografia.
Esta é a cara da pessoa que procuramos. É um terrorista e o senhor diz-me que é um agente secreto?
INSPECTOR 1
De secreto não tem nada. Só mesmo a sua existência.
SAKAMOTO
Se querem saber onde ele está não vos vou conseguir ajudar.
INSPECTOR 1
Eu acho que o temos de levar para a outra sala, senhor Inspector.
INSPECTOR 2
Quando foi a última vez que o viu?
SAKAMOTO
Éramos do mesmo grupo de amigos na faculdade. Depois cada um seguiu o seu caminho.
INSPECTOR 2
E desde então nunca mais se cruzaram?
SAKAMOTO
Não, senhor Inspector. Garanto que não.
INSPECTOR 1
O que foi então fazer à zona vigiada, espertinho?
SAKAMOTO
Procurar alguma coisa que me pertencesse.
INSPECTOR 2
E encontrou?
SAKAMOTO
Nada.
INSPECTOR 2
Vamos deixa-lo ir. Mas será vigiado, tenha atenção aos passos que dá.
INSPECTOR 1
Muita atenção. Um passo em falso e vai para a choldra.
Ouve-se uma voz vinda da porta da sala do teatro. Grita “Sakamoto, meu amor!” A porta da sala do teatro abre-se. É Lisa. Sakamoto vira-se para o público.
LISA
Sakamoto, meu amor! Sou eu! A tua Lisa!
INSPECTOR 2
Aponta a arma para o público.
Fique quieta!
INSPECTOR 1
Imóvel em nome da lei!
Lisa pára e fica uns metros à frente da porta.
INSPECTOR 1
Acenda a luz, sem brincadeiras.
Lisa levanta os braços e vai até à porta. A luz da plateia acende-se.
INSPECTOR 2
Pode subir até aqui. Venha!
Lisa continua com as mãos no ar. Vai até à boca de cena sem subir. Vira-se para o público.
LISA
Procurei-te, Sakamoto, procurei-te, traí-te, chorei tanto que me tenho transformado numa pequena ilha no meio do mar e estas últimas lágrimas estão prestes a afogar-me. Mas hoje encontrei-te. Liguei a televisão e eras tu que estavas lá. Sofri tanto que o meu sofrimento podia perfeitamente encher os buracos negros de todo o universo. Quero ficar contigo, Sakamoto. Quero ouvir cada batimento do teu coração, quero vigiar cada respiração do teu peito. O meu ouvido colado a ti, meu amor. Sentir a engrenagem do teu corpo. Guardarei todos os teus segredos, serei a tua mala dos segredos, serei a caixa onde podes guardar os teus mistérios. Posso tomar conta das tuas armas e elas nunca irão encontrar a ferrugem. Serás o meu agente secreto e o meu segredo mais bem guardado. E quando viajares serei a bagagem que te acompanha, e aquela que te carrega pela neve e serei sempre o teu amor.
INSPECTOR 1
Isto agora comoveu-me.
INSPECTOR 2
Quem é você?
As luzes da plateia apagam-se.
Blackout.
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A primeira cena de “O Homem Sem Cor” está disponível AQUI
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