Quem procura uma narrativa convencional não deve ler O Livro Branco da sul-coreana Han Kang. Nele encontra uma teia de várias histórias, umas vividas e outras imaginadas, narrativa capaz de exasperar leitores com pulsões mais ortodoxas. E na verdade, esse é talvez o aspecto mais bonito deste livro: a constatação de que, até o que imaginamos pode ser suficientemente real para marcar a nossa existência.
Nas palavras da autora, este é um livro de cura. Sentimo-lo intensamente: confrontados com o retrato duma existência suspensa, quebrada por um sofrimento que se diria omnipresente, assistimos também à forma como procurar descrever essa mesma existência adquire um certo efeito apaziguador (também em quem lê). É sensação estranha, sim, mas dir-se-ia que este livro provoca a empatia que trazemos adormecida, hibernada. E apenas descrevendo uma sombra, o silêncio, uns cueiros, flocos de neve.
Tendo um carácter autobiográfico, há dois aspectos intrigantes: primeiro, que não consigamos circunscrever uma origem para o seu sofrimento, a sua tão intrínseca melancolia. Han Kang narra com impactante nitidez o que é morar dentro da própria cabeça, mas não parece atribuir a nenhum facto em particular a origem da lassidão que a assola. Talvez seja precisamente isso o almejado neste livro: vasculhar as memórias até encontrar qualquer coisa que explique o porquê de algumas existências serem tão densamente povoadas de melancolia e mesmo de mágoa, fardos tão difíceis de carregar.
Depois, que mesmo sendo relato tão íntimo, ele nos alcance a todos com uma força tão retumbante, vibrações que se espalham das páginas preenchidas de profundas reflexões sobre a própria natureza humana, para o pensamento de cada um, atingindo quase que uma catarse colectiva (não com o desvendar de nenhum mistério oculto, mas antes na súmula de todas as emoções esmeradamente descritas), capaz de purgar até aquilo que pertence apenas a cada um dos que o lêem.
HanKang, que atingiu o reconhecimento mundial com “A Vegetariana”, ficciona nesta obra uma vida a partir da sua, reflexões aparentemente avulsas e sem fio condutor que se demarque com nitidez. E fá-lo na medida em que, a partir de pormenores aparentemente singelos, constrói narrativas hipotéticas: aquilo que poderia ter sido substitui não raras vezes o trajectoefectivamente por ela trilhado, mecanismo que transporta para o domínio da memória colectiva (com particular incidência nas consequências da guerra, ou do medo). E é isso que nos prende até à última página: essa vontade de descobrir onde está, bem escondida, a fronteira que delimita o real e o ficcionado.
Talvez o fio mais nítido deste emaranhado seja o que a liga à irmã morta recém-nascida. É a partir da sua existência, que nunca chegou a ser, que ficciona o que poderíamos apelidar de mundo paralelo. Liberta finalmente de percorrer os passos que seriam destinados à sua irmã, caminharia pela sua própria vida de forma bem mais leve. Os “e se…” que povoam o universo infantil aqui materializam-se, a cada passo tomado, sem que a fronteira permaneça nítida ao longo de todo o caminho. E é no puro prazer da contemplação ao assistirmos ao desvelar da narrativa, que encontramos finalmente a purga para as pequenas tormentas que carregamos todos, o alívio.
Será decerto único e intransmissível o que é que cada um descobre quando chega ao fim deste livro. Mas constatação consensual será a de que a esperança de poder um dia aliviar o fardo de carregar a existência tem uma cor: o branco.
Mais Livros AQUI