home Antologia, LITERATURA, MÚSICA, TEATRO O melhor de 2021

O melhor de 2021

O melhor que vimos, ouvimos e experienciamos em 2021, para que 2022 comece da melhor maneira. Só agora? Sim. Porque o ano analisa-se depois de terminar. E porque nós podemos. Somos cultores da Slow Culture #slowculture

 

JOÃO MINEIRO

Cinema

Summer of Soul, de Questlove (Hulu)

Estamos em 1969, esse ano nevrálgico dos “longos anos 60”, e que culturalmente ficou popularizado pelas imagens míticas do Festival Woodstock. Só que nesse mesmo ano aconteceu um outro festival, a 100 milhas de distância, cuja importância histórica nunca foi devidamente reconhecida. Pelo Harlem Cultural Festival passaram centenas de milhares de pessoas, maioritariamente negras e latinas, para ouvir nomes como Stevie Wonder, Nina Simone, BB King, Mahalia Jackson, The 5th Dimension, Herbie Mann, The Temptations, Sly & The Family Stone, Hugh Masekela, Gladys Knight & the Pips e tantas e tantos outros. Para ouvir a música, mas também para exorcizar as dores da violência racial e afirmar o orgulho na cultura negra e afroamericana.
O evento foi inteiramente filmado, mas ninguém quis comprar as imagens, que ficaram perdidas em arquivo, até que Questlove descobriu o arquivo, foi falar com músicos e quem lá esteve e decidiu edificar este sublime “Summer of Soul (…Or, When The Revolution Could Not Be Televised)”. Uma obra-prima que nos prova que a memória é um lugar de disputa para um outro mundo que precisamos de construir.

Paraíso, de Sérgio Tréfaut (Faux, Les Films d’Ici)

Todos os dias, ao cair da tarde, um conjunto de mulheres e homens quase centenários reúnem-se nos jardins do Palácio do Catete, no Rio de Janeiro. Juntam cadeiras e instrumentos e coletivamente cantam canções de amor, alegria, ciúme, desejo e sofrimento. Nestas serestas encontra-se gente que partilha histórias de vida difíceis, mas que naquele espaço descobriu um ritual de felicidade, fazendo do jardim o seu paraíso e a sua utopia concreta.
Quem os filmou foi Sérgio Tréfaut que, com a chegada da pandemia, viu os jardins serem encerrados, os cantos interrompidos, os corpos separados e as filmagens suspensas. Muitas daquelas pessoas acabaram por morrer à porta dos hospitais. Paraíso tornou-se, então, uma homenagem poética à grandeza dessa geração que partiu prematuramente, vítimas de um governo que deliberadamente as deixou morrer, mas que nunca apagará a grandeza desse Brasil que canta, luta e resiste.

https://www.youtube.com/watch?v=gEeToZzSJzc

 

Música

Álbum: Bem Bonda, de Criatura (Ed. Autor)

(Crítica AQUI)

Bem Bonda. Muitas e muitos de nós nunca teremos ouvido esta expressão oriunda da Beira Baixa e que dá título ao novo álbum de Criatura, essa banda que se fez um bando repleto de músicos, poetas e artistas de variedades. Como nos dizem na sua página, Bem Bonda é uma expressão que representa um resgate da ancestralidade linguística beiroa: «expressão mutável, dependente das gentes e dos lugares que dentro do mundo dos significados nos lembra não só que “já chega”, como também que, “como se não bastasse”, “um mal nunca vem só”». Este segundo álbum da Criatura sucede-se a Aurora, editado em 2015. A surpresa desse primeiro trabalho criou expetativas, que o coletivo reforçava nas suas poderosas performances ao vivo.
Bem Bonda vem confirmar o que se suspeitava: a Criatura é mesmo um dos melhores e mais promissores coletivos artísticos da música portuguesa contemporânea, pela sensibilidade poética da sua música, pela riqueza sonora das suas composições e pela pertinência das estórias que narram. Um álbum para ouvir, reouvir e que resume todo o potencial de construção de um discurso e de um diálogo artístico contemporâneo sobre o passado e o futuro da música portuguesa.

Concerto: Luca Argel ao vivo no Teatro da Trindade

Depois do cancelamento do seu concerto em 2020, no Teatro da Trindade, a espera aumentava a expectativa, ainda para mais depois do lançamento de Samba de Guerrilha, um dos melhores álbuns do ano. Luca Argel apresentou-se no Teatro da Trindade perante uma plateia rendida ao seu novo trabalho, mas também à viagem que proporcionou entre temas de Conserva de Fila (2019) e Bandeira (2017).
Um concerto inspirador, profundamente político e poético, onde o músico português e brasileiro surgiu brilhantemente acompanhado por Carlos César Motta na bateria, Neném de Chalé nas percussões, Cláudio César Ribeiro na guitarra eléctrica e Pri Azevedo no piano e acordeão. Nada que tenha sido um entrave àquela voz sensível e tocante que dá tanto valor às palavras e que faz da música uma forma de compromisso e empatia.

 

Livro

O Século XX Português. Política, Economia, Sociedade, Cultura, Império (Tinta-da-China)

O Século XX Português é uma obra seminal, de referência e de grande fôlego que percorre de forma ampla, embora com um grande esforço de concisão, a história política, económica, social, cultural e imperial de Portugal no século XX, convocando-o para o efeito seis especialistas que há décadas se dedicam a pensar as grandes transformações e impactos deste século no país que somos: Fernando Rosas, Francisco Louçã, João Teixeira Lopes, Andrea Peniche, Luís Trindade e Miguel Cardina.
É uma obra que condensa saber acumulado, rigor histórico e, não menos importante, uma forma de escrita acessível a todo o tipo de públicos. Um livro para ler de uma vez só ou por partes, à medida da necessidade e da curiosidade, mas que é um marco no trabalho de síntese da historiografia portuguesa contemporânea.

 

Teatro

Lisbon Sisters, de Mário Coelho (CCB)
(Crítica AQUI)

A temporada foi curta, mas no próximo ano estará de regresso. Lisbon Sisters, estreado no CCB, foi a última criação do jovem autor,ator e encenador Mário Coelho, cujo percurso curto, mas sólido, mereceu a recente distinção de “Prémio Revelação Ageas Teatro Nacional D. Maria II”.
Desta vez, Mário Coelho decidiu ter como ponto de partida o romance “As Virgens Suicidas”, de Jeffery Eugenides, adaptado ao cinema por Sofia Coppola. Só que se no romance original a história das irmãs Lisbon era revelada a partir de um ponto de vista externo, em Lisbon Sisters a câmara é virada para o interior, propondo-nos um novo olhar e um outro ângulo de observação sobre esta história.
Em Lisbon Sisters a atenção é direcionada para o mundo interior e para o espaço que habitam estas personagens. O encenador propõe que lhes escutemos as vozes, que lhes conheçamos a vida, que lhes reconheçamos visibilidade, subjetividade, individualidade e representação. Tal exercício, para além de corresponder a uma reinterpretação em busca da visibilidade, transforma definitivamente as possibilidades do nosso encontro com a obra, ampliando-a e convocando-a para um novo diálogo connosco, aqui e agora.
Mais um capítulo na história de um encenador que é uma voz cada vez mais consolidada na cena teatral portuguesa.

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MARIANA MARTINS

Cinema:
A Metamorfose dos Pássaros de Catarina Vasconcelos (Primeira Idade)

Madres Paralelas de Pedro Almodóvar (El Deseo)
The French Dispatch de Wes Anderson (Searchlight)

Séries/Streaming:
Glória (Netflix)

Scenes from a Marriage (HBO)

 

Música

Concerto:
B Fachada no Theatro Circo
Filipe Sambado no Maus Hábitos

Singles:
Mar de Gente– Stereossauro e Manel Cruz

Política-Luta Livre (Álbum AQUI )

Andorinhas- Ana Moura

Livros:
A máquina de fazer espanhóis – Valter Hugo Mãe (Alfaguara)
Dobra – Adília Lopes (Assírio & Alvim)
Esquerda Direita– Rui Tavares (Tinta-da-China)

Teatro:
À espera de Godot (TNSJ)
O Cerejal (TNDMII)

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NÁDIA BARROS

Cinema:
A Última Floresta (Netflix)

Música:
Duda Beat – Te amo lá fora

Juçara Marçal – Delta Estácio Blues

 

Livros
A Pediatra – Andrea Del Fuego (Companhia das Letras)
Azagaia – André Capilé (Edições Macondo)

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PAULO SILVA

Cinema:

Undine – Christian Petzold
Um filme que transporta um mito antigo para o contexto contemporâneo, pela poesia das imagens e dos silêncios, com interpretações soberbas de Paula Beer (que lhe valeu o Urso de Prata e o prémio de melhor actriz europeia) e do já habitual Franz Rogowski. Petzold arrisca nesta nova parte da sua exploração das contradições da Alemanha actual, desta vez através da alegoria, mas com uma Berlim dividida em fundo, mesmo que por via da sua apresentação museológica (a personagem de Paula Beer é uma historiadora especializada em urbanismo, que numa longa cena explica a história da capital).

Death of a Ladies’ Man – Matt Bissonnette
O veterano Gabriel Byrne na pele de um homem que nos parece ligeiramente familiar, diante do fim da vida e dos delírios que o infortúnio lhe traz. Uma fantasia bem doseada, com um dos grandes actores do nosso tempo e a música de Leonard Cohen a fazer a quase integralidade da banda sonora.

Souvenir – Joanna Hogg
Filme completo e marcante, autobiográfico da sua realizadora e argumentista Joanna Hogg, sobre uma mulher que começa da pior maneira a descoberta do Mundo em seu torno, mas também a concretização da sua arte e do Amor em todas as suas vertentes. Com uma realização plena de detalhes que elevam a película e interpretações próximas da perfeição de Tilda Swinton e da sua filha Honor Swinton Byrne, que contracena com um assombroso Tom Burke. Cinema (também) sobre a realização de um filme e uma realizadora em formação, metaficção de grande nível sobre a capacidade da Arte sublimar a dor e encontrar uma voz inteligível pelos seus pares e pelo espectador.

The French Dispatch – Wes Anderson
Uma viagem por várias épocas da ficcional Ennui-sur-Blasé pela visão sempre cómica e plástica do realizador americano, com a família habitual a que se juntam novos e essenciais elementos. Uma homenagem ao jornalismo (“love letter to journalists.” segundo o próprio Anderson) engajado de outros tempos, com poeira, suor, erros por discernir, mas sem o distanciamento da imparcialidade fria, das conveniências e dos números das redes sociais e das vendas. Uma vocação e uma aventura presa pelos sentidos e emotividade dos seus cultores, cuja escrita ainda hoje é reverenciada e muda vidas. Heróis, heroínas, anti-heróis e anti-heroínas e todos os círculos que interceptavam e em que se moviam. Um fartote de referências essenciais, mais ou menos explícitas, temperadas com interpretações à altura das memórias evocadas, com Benicio del Toro, Léa Seydoux e Jeffrey Wright à cabeça de (mais) um elenco de sonho.

Bergman Island – Mia Hansen-Løve
Um argumento bem urdido em matrioska, que nos prende até ao último momento, com uma Wazikovska que só surpreende quem não a vem seguindo e uma realização bem competente. Sobre o lugar da mulher no Amor e na Arte, tema onde gravitei no ano que passou.

Tre piani (Três Andares) – Nanni Moretti
Num mundo cinemático perfeito e não anglo-centrico, Riccardo Scamarcio e Alba Rohrwacher seriam os actores do ano. Duas performances sublimes num filme competente de Moretti a puxar ao dramalhão, sobre pessoas normais, desenhadas com realismo e, por isso, com todos os defeitos e qualidades que constroem uma personalidade.

Séries/Streaming: 

Exterminate All The Brutes – Raoul Peck (HBO)
Uma narrativa bem pessoal feita documentário sobre uma História alternativa: na perspectiva dos derrotados, cuja voz se perde no fumo dos tempos e das estórias oficiais tornadas únicas. As origens do racismo e do colonialismo, e a sua longa sombra sobre a História e a actualidade. Três conceitos chave são a base da argumentação de Peck e, segundo ele, os pilares da História: civilização, colonização e extermínio. Uma sacudidela valente, realizada com o primor a que nos habituou. Essencial.

The Underground Railroad – Barry Jenkins (HBO)
Baseado no fabuloso e multi-premiado romance homónimo de Colson Whitehead (publicado por cá pela Alfaguara), The Underground Railroad é uma fantástica metáfora para o caminho duro que os negros vêm trilhando nos EUA, desde a sua fundação. Com a estética irrepreensível a que já nos habituou (nunca ninguém filmou o negro como ele) Jenkins e Jihan Crowther (principal argumentista) trazem novas camadas ao original, densificando a perspectiva de viagem temporal através dos caminhos de ferro do título, que nunca existiram, assim como as personagens e o contexto dos “vilões”, conferindo-lhes uma multidimensionalidade que contraria o maniqueísmo e convida ao aprofundamento das questões para além da violência e da brutalidade. Joel Edgerton, a personificação do Mal tenaz e inclemente foi a escolha certeira para este desiderato. Uma obra de Verdade, em todas as acepções do conceito, com cenas inesquecíveis.

Hacks (HBO)
Duas mulheres, que representam gerações opostas da comédia, são forçadas pelas circunstâncias a colaborar, com resultados trágico-cómicos. Jean Smart, na sua pele, é uma força da Natureza. Uma interpretação plena de detalhes deliciosos e domínio perfeito dos tempos da comédia. Uma série leve mas compensadora, porque nem todos os conteúdos de topo podem pretender salvar o Mundo. Esta salva-nos do tédio, com umas boas gargalhadas.

Succession T3 – Jesse Armstrong (HBO)
A mais recente temporada desta saga familiar pós-moderna ironicamente vai beber aos clássicos greco-romanos e a Shakespeare, citando-os com frequência. Com a linguagem escatológica a condizer na perfeição com a falta de carácter de quase todo o elenco, o resultado é um pântano recheado de dinheiro e frustração, e retratos inclementes dos intocáveis da sociedade, os deuses do séc. XXI a quem tudo é permitido e perdoado, e quase nem precisam de comer ou dormir. O Poder é sustento suficiente ou a ambição de o obter. Depois tem este quarteto de actores na plenitude das suas capacidades: Jeremy Strong, o “filho mais velho” Kendall Roy, é um assombro constante, pelo alcance e intensidade quase doentia que empresta à sua interpretação, mas o patriarca Logan Roy, interpretado pelo experiente Brian Cox, o formidável e invencível Pai-Rei, um Lear sem a demência, é uma das fortes razões desta série ser incontornável. Com eles, Shiv Roy (Sarah Snook) é a mulher subalternizada num Mundo de homens, apesar do apelido, e o primo Greg Hirsch (Nicholas Braun) é a ligação directa aos clássicos, com o seu inglês arcaico e os seus maneirismos de outro tempo, sempre no limbo entre as duas facções e a cobardia cómica de quem não faz a mais pálida ideia de nada do que se passa à sua volta, com uma bondade que vem mais da ignorância do que do carácter, à imagem dos idiotas do teatro vitoriano. Tudo bem perto da caricatura e da soap opera, mas sem escorregar.

 

Música

Álbum:
Bernardo Sassetti Trio – Culturgest 2007 (Clean Feed)
Recordar é viver, mesmo diante músicos sempre presentes como Bernardo Sassetti. O trio com Carlos Barretto e Alexandre Frazão na sua fase telepática, com Sassetti à descoberta de trajectos mais minimais para as suas composições, sem perder o norte dos silêncios e da emotividade. Barretto e Frazão eram os manos mais velhos, presentes quando era preciso, mas sempre conscientes da necessidade de se sumirem nos momentos certos, mas sempre com espaço para criarem e brilharem em solos memoráveis, porque uma família é feita de partilhas. Um tesouro finalmente gravado para a posteridade.

Vijay Iyer Trio – Uneasy (ECM)
Trio que finalmente se juntou neste duplo álbum para mostrar como se pode transformar a pesada herança do Jazz no que bem se entender. Vijay Iyer é um pioneiro nesse rumo e neste Uneasy encontra uma voz mais impressionista e minimal, rejeitando exibicionismos em favor de ambientes e improvisos que apostam na imprevisibilidade. Tyshawn Sorey na bateria é um dos melhores da História e um dos três ou quatro vivos, ao lado de Antonio Sanchez e poucos mais. Para além da técnica surreal, é a interpretação que empresta a cada tema e o controlo absoluto do seu instrumento que impressiona, não só pela fluidez que faz a improvisação assemelhar-se a uma composição ou arranjo, mas também a segurança que lhe permite saltar entre a subtileza e a firmeza sem perder nunca a mão sobre a toada de cada tema. E, last but not the least, temos a contrabaixista Linda May Oh, que vem paulatinamente construindo uma carreira sólida alicerçada num som bem pessoal e identificável em qualquer ensemble, quente e leve, mas sempre oportuno e com solos de arregalar os ouvidos. Um álbum para a história e um concerto (no Guimarães Jazz) a guardar para memória futura.

Nacho Eguía – La Imagen En Silencio
Guitarrista argentino, compositor e professor, mescla a música tradicional e uma voz original nas suas composições, a que se junta o bandoneon de Matías Rullo. Música de técnica perfeita, plena de alma e beleza. Um equilíbrio difícil mas conseguido com enorme distinção.

Sam Braysher Trio – Dance Little Lady, Dance Little Man (UNIT Records)
Jazz tradicional muito bem tocado, com a ajuda do baterista Jorge Rossy (que tem no CV discos com Brad Mehldau, Ethan Iverson, Joshua Redman e Steve Swallow), entre standards e um original, num alinhamento que traz esta música mais virada para os músicos ao ouvido do melómano mais comum, optando pelo caminho mais melodioso e trauteável em deterimento de solos intermináveis ou compassos para preencher tempos mortos. Eficiente, jocoso sempre que possível, e recheado de boas ideias, algo sempre difícil para standards que já conheceram milhares de versões. Apesar de poder parecer ainda um pouco colado aos originais, Braysher revela um grande potencial no seu original, em que é perceptível a forma mais solta e criativa com que ataca o tema. Altamente recomendado e aguardo com expectativa poder escutá-los ao vivo por aqui.

Desidério Lázaro Feat. Daniel Bernardes – Stillness In Time
Com Daniel Bernardes no piano, o saxofone de Desidério Lázaro ganha asas, com os seus improvisos bem encaixados no lirismo mais clássico de Bernardes numa simbiose perfeita para as composições de Lázaro, com destaque para o tema título, de uma beleza e ternura imensas. O jazz português está bem vivo e recomenda-se.

Bloom – Drafty Moon (Lux Records)
J P Simões na sua encarnação internacional, aqui com inspiração clara no camaleão Bowie do seu melhor ciclo – o de Berlim, dos “Heroes” e dos vilões pop e electro, festivos e depressivos. A produção sumptuosa do Miguel Nicolau deixou-nos de boca aberta com a riqueza sónica do álbum, onde uma parede sonora bem espessa serve de tela para J P Simões se espraiar em inglês, bem acompanhado pelo mesmo Miguel na guitarra, baixo e teclado (!). Uma surpresa e um passo de gigante para este músico que recusa a quietude das glórias passadas, abraçando o risco. Um triunfo a ouvir repetidamente, com descobertas e recompensas a cada audição.

Dave Holland – Another Land (Edition Records) (Crítica AQUI)

Sachal Vasandani/Romain Collin – Midnight Shelter (Edition Records, 2021) Crítica AQUI

David Seixas – Serene Bach (Centaur)
Violinista virtuoso, agarra composições mais apaziguadas do imortal Bach com uma segurança e acerto que convidam a repetidas audições. 25 minutos entre sonatas e partitas que valem por horas.

Concerto:
Vijay Iyer Trio – CCVF Guimarães Jazz
Uneasy ao vivo. Um luxo ouvir estes músicos criar em tempo real.

 

Livros:
Diário da Peste – Gonçalo M. Tavares (Relógio D´Água)
Crítica AQUI

A Fúria – Silvina Ocampo (Antígona)
Um assalto aos sentidos e um desafio às concepções enraízadas do que é ou deve ser uma escritora ou a voz feminina, do estilo e temáticas associadas aos escritores da América do Sul e dos limites da escrita. Um daqueles que muda vidas. Crítica mais completa em breve.

O Cânone – António M. Feijó, João R. Figueiredo e Miguel Tamen (eds.) (Tinta-da-China)
Obra de fôlego que tardava, numa selecção criteriosa de três humanistas de reconhecido mérito, a que se juntam outros, encontramos uma lista de autores e respectivos ensaios dedicados à sua obra, num volume que não pretende ser exaustivo, mas antes “um livro de crítica literária”. Diverso, informativo, e capaz de despertar a curiosidade motivadora de pesquisa posterior que o complete. Um dos livro deste e dos próximos anos.

Second Place – Rachel Cusk (Faber & Faber)
Publicado em português pela Relógio D´Água, teve como ponto de partida o livro Lorenzo In Taos, que descreve a estadia de um intratável D. H. Lawrence sob os auspícios da patrona das artes Mabel Doodge Luhan em Taos, New Mexico, e a sua relação explosiva, mais tarde utilizada como material de escrita em vários livros do britânico. Para Cusk é apenas o ponto de partida para um estudo da natureza humana em situação de confinamento espacial (a acção decorre durante a residência artística do pintor referido apenas como L, a convite da protagonista, com uma segunda casa [o tal Second Place] que não utiliza), mas também dos clichés ligados à Arte e aos artistas homens, confrontados com a obsolescência da carta branca que sempre tiveram para desenvolver o seu trabalho e procurar “inspiração”, em contraste com as mulheres na mesma área e as outras que tinham o azar de se cruzarem com eles. Também as dinâmicas familiares e a intimidade são escalpelizadas, usando o relato da protagonista mantida anónima a um tal Jeffers. Escrita inteligente e atenta ao detalhe físico e emocional, profunda sem cair na cilada do pretensiosismo. Magistral. Outra vez.

Philip Roth: A Biography – Blake Bailey (W. W. Norton & Company)
Publicado em português pela Relógio D´Água, tive o privilégio de a ler em inglês. E que prazer fazê-lo. Acesso total do biógrafo aos arquivos de Roth é um bom ponto de partida. A consequência: arredar as cortinas para iluminar o homem por detrás do monumento literário que o imortalizou e reavaliá-lo com todos os dados relevantes, inclusive entrevistas a familiares e amigos íntimos. Sem surpresas, como todos os grandes, também Philip Roth falava do que conhecia e, de uma forma ou outra, deixava-se no que escrevia. Um puzzle bem montado que junta o criador à sua criatura de forma convincente e fundamentada. Leitura viciante.

Todos os Poemas – Friedrich Hölderlin (Assírio & Alvim)
João Barrento num trabalho de adaptação exaustivo e primoroso da obra do ícone do Romantismo alemão ao Português de hoje. Mais uma obra que deixa de faltar na biblioteca de qualquer leitor que se preze.

O Trabalho do Actor na Obra de John Cassavetes – Filipa do Rosário (Sistema Solar/Documenta)
Crítica AQUI

A Torção dos Sentidos – João Pedro Cachopo (Documenta)
Único livro que encontramos este ano que vale a pena ler sobre o assunto que domina as nossas vidas há quase dois anos consecutivos. É filosofia sim, mas fala do que nos rodeia e antecipa o futuro próximo com confiança, estrutura sólida e honestidade intelectual.

Fernanda – Ernesto Sampaio (Vasco Santos Editor)
Crítica AQUI 

O Fio do Horizonte – António Tabucchi (D. Quixote)
Livro epistolar sobre sonhos de superação e escapismo à beira mar, entre a neblina das marés e os desejos reprimidos. Tabucchi era um mestre.

Atlas Histórico do Médio Oriente – Florian Louis (Guerra & Paz)
Um documento de grande qualidade e capacidade de organização de informação, de forma inteligível e cativante. Perceber a História para perceber o presente e antecipar o futuro. Um começo auspicioso para um entendimento da realidade desta zona do Mundo.

Changer: Méthode – Édouard Louis (Seuil)
Um autor essencial do séc. XXI, que fala do que conhece melhor: de si, sem filtros. Da luta para superar a sua circunstância e as etiquetas com que a sociedade o prende: a classe, a sexualidade, as escolhas, as máscaras. Está tudo à vista, como um diário íntimo partilhado, numa escrita directa e sem sentimentalismos. Um percurso mostrado ao detalhe, numa leitura fascinante.

Viagem ao País do Futuro – Isabel Lucas (Companhia das Letras)
A repórter, crítica e escritora que faz as nossas delícias com tudo o que publica, traz o modelo da sua anterior viagem pelos livros e a actualidade norte-americana ao maior país do sul do continente – o Brasil – para um retrato e um percurso pelos territórios emocionais, culturais e sócio-políticos de uma nação em que a Ordem e o Progresso da sua bandeira tardam em concretizar-se. Conhecer o País irmão sem sair do sítio.

Noites Azuis – Joan Didion (Cultura Editora)
A malograda Joan Didion e um dos seus livros mais pungentes, finalmente editado em português. A propósito da morte da filha, reflecte sobre a vida e a memória, ao seu estilo seco e rigoroso, mas também sobre a aproximação da morte, a velhice e o descontrolo sobre o corpo e o destino, com todos os medos e angústias inerentes. “Quando falamos de morte falamos dos nossos filhos” é o mantra repetido e dissecado ao longo do livro. Vinte meses penosos, entre a primeira hospitalização de Quintana e a sua morte. As ligações com O Ano do Pensamento Mágico são expressas: “Já não quero lembranças do que passou (…) do que se perdeu (…) Houve (…) um longo período (…) em que pensava que sim. Um período em que acreditei que podia manter as pessoas completamente presentes (…) preservando as suas recordações, as suas «coisas», os seus tótemes.” Recordar não é já viver, mas antes uma forma de culpabilização : “Em teoria, estas recordações servem para trazer de volta o momento. Na verdade só servem para deixar claro como não apreciei adequadamente o momento quando era presente. (…) era mais uma coisa que não consegui ver”. Dura consigo. Consciente sempre. E aterrorizada. “Depois de ela nascer nunca mais deixei de ter medo” e “A fonte do medo era óbvia: o mal que lhe podia acontecer.” O medo de falhar como mãe e como educadora, mas também o “falhanço em confrontar as certezas do envelhecimento, da doença, da morte”. Um livro belo e devastador, uma tentativa falhada de catárse vertida numa reflexão sobre a maternidade e a impotência diante dos imponderáveis da vida.

Sétimo Dia – Daniel Faria (Assírio & Alvim)
Um livro novo de um poeta maior da nossa literatura. Poemas curtos sobre um corpo que se desintegra diante de um Outro, ausente e amado. Talvez Deus.

No Íntimo de uma Gramática Morta – Rui Nunes (Officium Lectionis)
Prosa poética com os dois pés na realidade. Sentidos alerta, imagens poderosas e os elementos constantemente invocados como norte para uma percepção aguda transposta para o papel e processada pelo sentido poético. “Estar próximo é não saber chegar”. Ainda bem que este livro nos chegou. Uma editora a manter no radar.

Diccionario Da Linguagem das Flores/ Crónicas – António Lobo Antunes (D. Quixote)
Dois livros bem distintos de um escritor maior. Textos curtos nas Crónicas, num registo a que já nos habituou, de sensibilidade e expressividade sobre o presente e o concreto.
Já o Diccionario é o relato de um regresso a casa depois do inferno da Guerra, mesclando a narrativa que vai progredindo, com as vozes interiores e exteriores que o livro, funcionando como unidade perpetuadora desses testemunhos, vai revelando, criando um sentido entre muitos possíveis para diferentes leitores. Um escritor que temos a sorte de chamar nosso, mas é do Mundo e não tem tempo.
Crítica mais completa em breve.

Afastar-se – Luísa Costa Gomes (D. Quixote)
(Mais) uma demonstração de como se escreve sobre um tema – a água – no formato de conto, com uma construção inatacável e um português que de uma perfeição rara. Sobram epítetos para esta criadora inesgotável.

Três Conferências (Primeira) – Maria Filomena Molder (Edições do Saguão)
Sobre Quohlet, aquele da parte mais fascinante da Bíblia – Eclesiastes – por uma mente que se espraia um pouco por todos os recantos da nossa cultura para o enquadrar. Essencial.

 

Teatro

Lear (TNSJ)
Crítica AQUI

Qui a Tué Mon Père (TNSJ)
Crítica AQUI

O Balcão (TNSJ)

Dramatículos de Samuel Beckett (Rivoli)

Crítica AQUI

 

Bom 2022 !

 

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