home Antologia, LITERATURA O Rapaz Selvagem – Paolo Cognetti (D. Quixote – 2018)

O Rapaz Selvagem – Paolo Cognetti (D. Quixote – 2018)

“O jovem citadino no qual me tornara parecia-me o perfeito contrário daquele rapaz selvagem; assim nasceu dentro de mim o desejo de ir em busca dele. Não era tanto uma necessidade de partir quanto de regressar; não tanto de descobrir uma parte desconhecida de mim mesmo quanto de reencontrar uma antiga e profunda parte que sentia ter perdido”.

Paolo Cognetti, nascido em Milão em 1978, é actualmente um dos escritores italianos mais aclamados pela crítica e apreciados pelos leitores. Há anos que divide a sua vida entre a cidade e uma casa situada nos Alpes a dois mil metros de altitude.
As Oito Montanhas (2016), foi o primeiro romance de Paolo Cognetti, publicado em Portugal no ano de 2017, e que o consagrou como o rapaz prodígio das letras italianas. No entanto, e ainda que a Portugal o O Rapaz Selvagem tenha chegado apenas depois daquele, foi escrito antes de “As Oito Montanhas”, como uma espécie de primeira tentativa no reino da não-ficção.
De forma muito singela, O Rapaz Selvagem é o diário dos primeiros seis meses do escritor nas montanhas, da sua fuga a uma depressão e um relato das experiências de solidão e ermitério. Numa entrevista aquando da publicação do romance, diz-nos o autor: “O que me levou a essa mudança foi a sensação de que estava a viver uma vida vazia. Tinha 30 anos, e senti o que sentem tantos outros jovens que se dão conta de que lhes falta uma razão forte para viverem na cidade. Foi num período em que muitas coisas pareciam ter chegado ao fim. Foi o fim de uma relação amorosa, de um projecto que tinha com alguns amigos, e julgo que estava à beira de uma depressão. Ir para as montanhas foi uma resposta à depressão. Encontrar um lugar onde pudesse começar de novo, descobrir algo que me apaixonasse. Uma nova vida, uma energia nova. Porque a depressão é isso, essa vertigem que nos rouba a energia. Já nem escrevia, tinha até deixado de ler. Estava dominado por uma enorme fragilidade. As montanhas foram um caminho para encontrar de novo a forma e o meu gosto pela vida.”
O autor, que nunca se designa, embora narre na primeira pessoa, tem trinta anos e sente-se sem rumo ou esperança quando decide partir para a montanha, inclusive na esperança de voltar a escrever: “Acima de tudo, não escrevia, o que para mim é como não dormir ou não comer: sentia um vazio como nunca tinha conhecido. […] Menino da cidade, criado num apartamento, tinha crescido num bairro onde não era possível brincar no pátio ou na rua, e a montanha representava para mim a mais absoluta ideia de liberdade”.
O autor cita recorrentemente outros escritores modelos, que optaram por abandonar a civilização para se poderem encontrar: “Nesses meses, desprezava os romances, mas sentia-me atraído por histórias acerca de pessoas que, rejeitadas pelo mundo, procuraram experiências de solidão na natureza. Li o Walden, de Thoreau, My First Summer in the Sierra, de John Muir e Histoire d’Une Montagne, de Elisée Reclus. Tal como eu, aqueles escritores eram jovens homens quando se despediram da civilização para ir para os bosques. A viagem de Chris McCandless, narrada por John Krakauer em Into the Wild, marcou-me especialmente. Talvez porque Chris não fosse um filósofo do Séc. XIX, mas um rapaz da minha época, que aos vinte e dois anos abandonara a cidade, a família, os estudos, um futuro brilhante concebido segundo os padrões da sociedade ocidental e partira para uma errância solitária que terminaria no Alasca, com a sua morte pela fome. Quando a sua história se tornou famosa, muitas pessoas julgaram idealista a sua escolha, uma fuga da realizada, ou mesmo uma pulsão suicida. Eu, porém, compreendia-a, dentro de mim, sentia admiração por ela”.
A montanha neste livro é, sem qualquer dúvida, muito mais do que a neve, as escarpas, o ar rarefeito e frio, que alpinistas e caminhantes desafiam e onde ainda alguns pastores sobrevivem no seu modo de vida. É em si a imagem idealizada de um modo de vida, despojado e lento, numa espécie de regresso ao princípio dos tempos.

É também na montanha que se dá a perda e o reencontro entre o autor e o seu pai, e, bem assim, com todos aqueles que de alguma forma lhe serviram de figura tutelar: “Desde criança que sentia a falta de um mestre. O meu pai estava sempre a trabalhar e além dele eu não tinha outras referências masculinas. Na minha visão das coisas, a cidade pertencia às mulheres, portanto era evidente que deveria procurar noutro lugar o mundo dos homens: fora de casa, longe da escola, onde quer que se escondesse e caso existisse. Descobri a alta montanha graças a um guia chamado Renzo, que começou a levar-me consigo quando eu tinha oito anos. Foi para mim um encontro fundamental. […] Eis, portanto, o que significada Renzo para mim: o homem adulto com quem eu ia para o meio dos glaciares, por vezes debaixo da neve e vento, chorando e vomitando. Era a pessoa que me falava com ternura e me convencia a seguir em frente. Fazia-o tão bem que eu estaria disposto a segui-lo para qualquer lugar.”.
Um belíssimo livro, de escrita leve e intimista, despojada e paradoxalmente rica e plena de vida, como as montanhas de que fala. Mostra-nos que há lugares que vivem na nossa infância e que nos deixam memórias ou marcas tão profundas que é inevitável lá regressarmos periodicamente, quanto mais não seja para deixarmos escondidos bilhetes escritos nas “rochas fendidas e nas fissuras das cascas das árvores”, de modo a que ali possamos permanecer mesmo depois de chegada a altura de regressar.

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