O Resto Já Devem Conhecer do Cinema não é, em sentido estrito, uma adaptação de As Fenícias de Eurípides. Martin Crimp não actualizou a peça grega de forma explicita, nem irreversível. Manteve, por exemplo, os nomes dos intervenientes neste episódio da saga de Édipo, retendo ainda o entrecho fundamental da tragédia euripidiana. No entanto, Crimp dotou a sua peça de incidências que se vão introduzindo subtilmente e pulverizam as barreiras de um passado mitíco, posicionando O Resto algures numa espécie de actualidade difusa. O resultado é uma combinação de caracteres remotos e sinais facilmente reconhecíveis. «Que é feito da luz resplandecente? Que é feito do cinema?/ – Que é feito das reconfortantes sirenes da polícia?». Eis o que perguntam, a certa altura, as Raparigas da peça. Em Crimp, o mais amplo Coro euripidiano, composto por «quinze mulheres fenícias» (trad. Sofia Frade, in Tragédias III, Eurípides, INCM, 2018), foi convertido num conciso quarteto de raparigas («Nós somos as raparigas.», dirão, ao serem interpeladas pelo filho de Jocasta e Édipo, Polinices, de regresso breve à terrível casa familiar.) Ambos os coros procedem, contudo, de forma similar, comentando os acontecimentos e interpelando as personagens, antecipando acções por vir ou resumindo factos anteriores (atributo fundamental, tanto em Eurípides, quanto em Crimp).
Não deixará de ser curioso notar que, assim como Martin Crimp volta as suas atenções para um texto prévio, Eurípides recorreu à mesma matéria dramatizada por Ésquilo, em Os Sete Contra Tebas. E, não muito diversamente de Crimp, o grego procedeu por arranjos, acrescentos, modificações. Para dar apenas dois exemplos, chamados à colação por Sofia Frade, na sua introdução à peça euripidiana (Tragédias III) o tragediógrafo alterou a textura do mito, poupando por mais algum tempo – durante quase toda a peça, na verdade – a personagem de Jocasta, mas sacrificando, literalmente, o filho de Creonte, Meneceu, com vista a aplacar a força do Destino e poupar a cidade de Tebas. O mesmo fez Martin Crimp. E, realmente, em Eurípides, é Jocasta quem procede ao Prólogo, o qual apresenta, retoma e explica o contexto em que decorrerá a tragédia. Portanto, não só a mãe e mulher de Édipo é preservada até quase ao fim da peça, mas detém um papel fundamental, de reconto e contextualização dos factos tratados ao longo das peças de Eurípides e de Martin Crimp. De resto, ao longo quer de As Fenícias, quer de O Resto, será permanente essa função narrativa, que consiste em preencher lacunas que a acção, por si só, poderia provocar. Martin Crimp pegou nesse pressuposto e quase o esventrou. Em vez de apresentar um texto coeso, o do Prólogo de Jocasta, entremeia-o com as intervenções das Raparigas, que interrompem e perturbam, cortam, mutilam o discurso da personagem. Como se já fosse impossível às palavras reconstituírem harmoniosa e fielmente os factos da ignomínia, e tudo tivesse de ser um fragmento poroso e friável, sujeito a toda a erosão, a do tempo e a da própria reconstituição:
JOCASTA:
Luz resplandecente.
No passado.
RAPARIGA:
Diz Jocasta.
JOCASTA:
Diz Jocasta.
RAPARIGA:
Cadmo.
JOCASTA:
Cadmo – sim – deixa a costa fenícia
à procura de Europa
e acaba – diz ela – por fundar Tebas.
Funda Tebas aqui onde agora é Tebas.
RAPARIGA:
Os seus dedos.
JOCASTA:
O quê?
RAPARIGA:
Os seus dedos.
JOCASTA:
Os seus dedos – à força de partirem as conchas
dos caramujos marinhos
para obter tinta – diz Jocasta –
cheiram a sexo.
(Pausa.)
Traz com ele do Levante
luz resplandecente, a tinta vermelho-sangue que o fez enriquecer
o seu próprio material humano e o alfabeto.
RAPARIGA:
Casa-se.
JOCASTA:
Casa-se. Sim. Reproduz-se.
Cada nova geração pode agora usar o alfabeto para escrever.
Cada uma replica o material humano daquela que a precede
replica mas corrompe o material humano daquela que a precede
Até que um dia nasce a desgraçada soma
de todos estes erros: Laio.
Laio casa-se.
RAPARIGA:
Comigo.
JOCASTA:
O quê?
RAPARIGA:
Casa-se comigo. Jocasta. Diz.
JOCASTA:
Laio casa-se comigo. Jocasta.
(Pausa.)
Casamo-nos mas não temos filhos.
Humilhado por causa da sua incapacidade para se reproduzir
Laio consulta o oráculo de Delfos
onde paga o direito de entrada e implora por um filho
mas Apolo diz-lhe “Não faças isso.
O teu próprio filho te há-de matar mais ainda
toda a tua família há-de escorregar na fina camada de sangue
que cobrirá o chão do palácio. Fim da entrevista.”
Laio vem para casa fazendo levantar o pó à sua passagem
e assim que passa a porta introduz o pénis
na minha vagina. “Esta é para Apolo”, diz ele.
É o meu primeiro orgasmo.
(Pausa.)
Luz resplandecente.
No passado.
Laio meu marido está curvado sobre a sua banca de trabalho
a tentar passar uma ponteira de aço através de dois buracos
que perfurou nos tornozelos do nosso filho recém-nascido.
E qual é o efeito cénico deste embate, verdadeiro corpo a corpo entre Jocasta (Isabel Lopes, possivelmente, a mais forte presença em palco) e o coro (Mafalda Taveira, Maria Luís Cardoso, Marta Taveira, Sofia Nero Guimarães)? Sem dúvida, o de uma tensão avassaladora, percorrida por uma espécie de hipnose que captura as figuras em cena, turvando-as, remexendo-as como faria a figurinos postos à sua mercê. Porque é isso que estas pessoas são: um corpo com uma função, seres trespassados pela força temível de uma necessidade que os impele a errar e a sofrer o castigo. O coro força Jocasta a recordar, a contar, esclarecer. Não sabemos se o faz por castigo à mãe-esposa, se por catarse. Ou para benefício da peça, que tantas vezes se autonomiza como texto e reflecte sobre si mesma.
O palco do TNSJ recebeu um elenco forte em que se destacam, de forma clara, duas mulheres: Isabel Lopes, no papel de Jocasta, e Sara Barros Leitão, encarnando Antígona. A consciência e o domínio de si, da sua tragédia pessoal, confere à actriz que assume a personagem de Jocasta uma força temível. Um domínio que se pressente mesmo que a actriz/personagem esteja, simplesmente, a dar conta das marcas do tempo e do sofrimento no seu próprio corpo:
Sim cortei o cabelo
– foi demasiado melodramático? –
– tenho um ar estranho? –
mas tinha de conseguir obrigar-me a parar de chorar.
Tinha de conseguir fazer vingar a ideia
de que uma mulher – por muito ultrajada que seja –
não precisa nem de gritos nem de lágrimas.
É óbvio, no manejo de si, que a actriz controla a cena, modela as palavras para obter o sentido pretendido. A mulher despojada de um símbolo óbvio de feminilidade, lança mão do seu cabelo cortado, de forma quase displicente, mas em perfeito controlo de tudo. Nem sequer de «gritos», nem «lágrimas», precisará. Bastar-se-á a si mesma. E será, porventura, o pilar mais seguro da peça e desta encenação, até que a morte dos dois filhos a faça, finalmente, ceder. Mas, até ao momento derradeiro, será um sinal de força e resistência à adversidade.
Por seu turno, Sara Barros Leitão incorpora uma Antígona diferente. Ainda não é a Antígona mais matura da peça de Sófocles, nem o esteio do seu pai, como em Édipo em Colono, do mesmo Sófocles, mas um estágio intermédio, que prepara essa serenidade, mas que, para já, é coisa bem diferente. E, diga-se, bem mais cativante. A Antígona de Sara Barros Leitão – a mesma de Eurípides e de Martin Crimp – é mais livre, por isso menos comprometida com a virtude cívica. Ainda não assimilou a terrível verdade do mal que caiu sobre a família. Uma união incestuosa, uma descendência condenada a padecer, um irmão que deverá ficar sem sepultura. Só no fim de O Resto essa consciência começa a ganhar raízes em Antígona. Até lá, a personagem descobre-se e descobre os outros. Sente uma irresistível atracção pela turba dos soldados que observa a partir das muralhas tebanas, até que um projéctil a atinge, e tudo se torna mais real. Mas, mesmo aí, a personagem mantém-se suspensa sobre a realidade, como se estivesse pendurada por um transe. Sensual, inquisitiva, dúbia, Antígona possui o apelo do que ainda não assentou, do que voga ainda à descoberta. A actriz capturou esses sentidos com uma leveza rara. Parece transportar essas camadas como se elas fossem películas sem peso, nem espessura, que lhe cortassem os movimentos. Pelo contrário, cruza a cena com desenvoltura e elegância. Mesmo quando insulta, insolente e afectada, uma escrava que ousa chamar-lhe a estúpida que está a ser, perante a iminência das tropas que cercam Tebas.
Salientem-se ainda a segurança do Creonte de Jorge Mota, um homem dividido entre o desejo de manutenção do status quo – porventura menos cínico e pernicioso que o Creonte de Sófocles – e o seu conflito pessoal. Um homem encurralado entre a defesa do Estado e a insolência pessoal, que consiste em querer ignorar a profecia de Tirésias, segundo a qual Creonte devia entregar em sacrifício o próprio filho. Merece, igualmente, referência a força colectiva do coro (Mafalda Taveira, Maria Luís Cardoso, Marta Taveira, Sofia Nero Guimarães). Este conjunto de actrizes recebeu um dos tratamentos mais cuidados da encenação. Desde o guarda-roupa, subtilmente paramilitar, até ao jogo intrincado ente inocência e perversão que pontua as suas intervenções. Colectivamente, as actrizes encarregadas de assumirem este importante papel da peça desempenham-no com elevada entrega. A encenação, assim como resumiu em quatro o número das mulheres (raparigas, em Crimp) do Coro, despojou o palco de atavios porventura desnecessários. Assumindo certa sobriedade, quase esquemática, só a elevação dos planos da cena foi especialmente marcada. De resto, nem a profundidade, nem a clivagem entre cenários distintos foi assinalada em particular. Possivelmente, terá sido a melhor opção neste «drama», como por vezes se chama às peças de Eurípides. Já não importa tanto ir buscar a elevação, a distância e o hieratismo das representações de Ésquilo, mas reduzir tudo ao humano que se procura entender. Mesmo com a permanente base mítica e histórica, a peça de Eurípides e a de Crimp situam na personagem e, portanto, na pessoa, o seu fulcro. A opção por uma encenação quase despida e mais ou menos isenta de sinais históricos serviu os propósitos da peça.
O Resto Já Devem Conhecer do Cinema é tanto uma peça política, quanto uma inspecção implacável da alma humana, motivo pelo qual se pode dizer que o seu fulcro é uma tentativa de entender a luta pelo poder, mas também um esforço para perscrutar os recantos mais obscuros do que significa ser humano. A ambição, a cobiça, a vontade de poder, estão em jogo na luta terrível entre dois irmãos sequiosos do trono de Tebas. Polinices e Etéocles, os filhos condenados de Édipo e Jocasta, lutam pelo poder e fazem-no até se assassinarem mutuamente, provocando o suicídio da mãe, que, pelas volutas desta complicada teia genealógica, é também sua avó. O mito fornece estrutura, amplidão e, por conseguinte, alcance a esta peça de Martin Crimp, que parte de uma tragédia escrita há mais de 2400 anos, para chegar até nós. E chega porque, precisamente, se vale da exemplaridade do mito e do que nele há de universal e extrapolável.
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