Começámos a ler O Samurai, não temos vergonha de o dizer, com o “espírito” errado. Foi um início demasiado Europeu de leitura: rápido, vagamente sôfrego, à espera de acontecimentos em catadupa, de personagens cinematográficas, de um enredo pronto a dar resposta à nossa ansiedade citadina.
O choque foi grande e não se fez esperar. O Samurai contemplou-nos, olhar altivo, nas suas vestes pesadas, passada lenta, respiração forte. A descrição da vida nos pântanos – e da força destes, que parecem existir no interior de cada personagem – é assim: pausada e morosa, quase enervante na sua pacatez não isenta de angústia. Pouco a pouco, Shusaku Endo – escritor japonês e católico – vai contando a decisão que esteve na base na viagem de alguns dos primeiros japoneses à Europa, e leva-nos com eles na travessia. Galardoado com o Prémio Noma (um dos mais importantes prémios literários do Japão), Endo foi batizado aos doze anos, num Japão em que apenas 1% da população era cristã.
Baseando-se em factos verídicos, Shusaku Endo constrói a sua narrativa em torno de duas personagens centrais: o Samurai, paradigma de uma cultura japonesa rural, clássica, presa às mais doces amarras da religião e tradição familiares, e o Padre Velasco, um Franciscano espanhol, profundamente homem na sua veste de sacerdote da igreja. A viagem de barco deste grupo, do Japão ao México e daqui para Roma, propicia a lentidão reflexiva a que o livro convida. É, também ela, demorada, profunda, aqui e ali atormentada e perigosa.
Tudo se passa em 1613, e em muitos capítulos é o Padre Velasco quem narra os acontecimentos, na sua ótica de pregador apaixonado e missionário obstinado, com alguns laivos de maquiavelismo. São mistos os sentimentos que esta personagem nos desperta. Ora o censuramos, pelos esquemas quase maliciosos, ora o encaramos com compaixão, porque percebemos nele a vontade de um Amor maior.
Durante toda a narrativa, o Samurai parece fitar-nos, num olhar inquietante e perturbador, que nos faz respeitá-lo, mesmo quando com ele empatizamos.
O Samurai é um livro denso, cuja grande riqueza radica na profundidade psicológica das personagens e nas suas reflexões relativamente à Fé, à Família, à honra, ao compromisso, à tradição, à ambição e à resistência humanas. Mais do que um romance, o Samurai apareceu-nos como verdadeira lição de leitura. Às vezes, antes de ler, é preciso aquietar. Encontrar o nosso espaço de silêncio e fazer do livro a nossa oração.
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