Triângulo da Tristeza é o termo utilizado na área da cirurgia plástica para identificar a zona entre as sobrancelhas e o nariz. O local onde, resultado da soma dos anos vividos, se acumulam rugas. No mundo da moda, é comum os modelos corrigirem essa zona, tal como é aconselhado a Carl (Harris Dickinson), entre dentes, pelo júri do casting a que concorre. É aqui que o filme principia.
Sobre batidas aceleradas esvaziadas de letra, assentes numa estética clubbing rooftop, conhecemos o jovem modelo que tenta a sua fortuna no regresso aos castings. Umas cenas mais adiante, como cenário de um desfile de alta costura, somos confrontados com mensagens manifestando preocupações sociais e ambientais, ao mesmo tempo que são exibidos corpos (considerados) perfeitos. Ao ler aquelas palavras ocas, lembramos as páginas de redes sociais de empresas petrolíferas pela natureza, com jovens sorridentes, anúncios verdes pensados pelas equipas de marketing ou financiamentos esporádicos a ONGs. Isso: greenwashing. Técnica perversa ensinada nas faculdades de marketing, em que o lucro é mais importante que o futuro do planeta. Por isso, confundam-se os consumidores.
Greta Thunberg resume o processo “estes padrões duplos tendem a ser a norma universal. Toda a gente nos diz como está a agir bem e como tudo corre bem. E, ao mesmo tempo, fazem batota”. Perante a inscrição da tal mensagem (publicitária) “não nos podemos esquecer que somos todos iguais”, devemos recordar o que Eric Arthur Blair (perigoso citá-lo nestes tempos de confusão neo-fascista) escreveu no seu livro Triunfo dos Porcos, “Todos os animais são iguais, mas alguns são mais iguais que outros”.
Momentos antes, Carl, que neste desfile é espectador, perde o lugar. Na verdade, ele parece ainda não ter encontrado o seu lugar na vida. Perante a chegada de umas senhoras VIP, um casal tem que trocar de lugar. Pouco depois percebemos que afinal é necessário um lugar adicional para mais uma VIP e assim toda a fila se desloca para a direita, deixando a última pessoa sem lugar. Neste caso foi Carl.
Ruben Östlund apresenta-nos dois jovens modelos do arrivismo social contemporâneo. Yaya (Charlbi Dean) e Carl, personagens de classes inferiores que trepam a pirâmide social com a ajuda dos instrumentos actuais na busca do desejo de mais seguidores, mais dinheiro, mais aceitação das classes superiores. Todo o filme é construído à volta desta noção de classe. O seu dedo pouco suave (por vezes brusco) torna esta consciência de classe mais explícita no filme que na vida real.
Sabemos que na indústria de moda o homem recebe menos dinheiro que as mulheres e apesar disso, quando chega a conta do jantar, Yaya prefere ignorá-la e esperar que Carl cumpra o seu papel. O homem paga o jantar, o homem cede passagem à entrada do elevador, o homem oferece flores, o homem sabe o seu lugar. E Carl não está confortável com este papel naquela relação de conveniências niilistas (Yaya almeja ser uma trophy wife, Carl talvez aumentar os seguidores) e uma discussão sobre dinheiro explode (sem ter fim à vista).
A conversa sobre dinheiro entre o casal de jovens prolonga-se até ao táxi, no elevador, no quarto. Talvez uma metáfora para a quantidade de tempo que dedicamos a este tema. Money, money, money. Ficamos a conhecer melhor os intuitos destes jovens modelos, influenciadores digitais movidos pelo dinheiro, fama, ego e tal como alguns jovens da sua idade, preferem passar mais tempo na internet do que entre lençóis, a fazer sexo.
Na escuridão silenciosa da cadeira de cinema, sentimos um constrangimento prazeroso em todo aquele exagero de diálogos sobre dinheiro. Essa procura do embaraço social que encontramos em trabalhos anteriores de Östlund: em “O Quadrado” durante os diálogos de Christian (Claes Bang) e a jornalista americana, Anne (Elisabeth Moss), nas suas cenas de sexo anti-erótico ou nas interrupções grosseiras que um homem com Síndrome de Tourette não consegue controlar durante uma conversa sobre arte (e tolerância?); em “Força Maior” quando o casal Ebba (Lisa Kongsli) e Tomas (Johannes Kuhnke) tenta alinhar uma narrativa familiar sobre a experiência trágica durante uma avalanche. Podemos afirmar que neste momento o sueco é o MDS, Mestre do Desconforto Social. E isso é paradoxalmente aprazível, até porque há uma tela a separar-nos de toda aquela “realidade mentirosa”, como apelidaria João Botelho.
A tal discussão, sem pazes na cama, é varrida para águas profundas. Carl e Yaya estão onde desejavam. Num iate de 250 milhões de dólares para esquecer os problemas gravíssimos das suas vidas e se concentrarem nos bronzeados à beira da piscina, nos melhores cenários para as suas publicações digitais, enfim, foi para isso que lhes ofereceram aquela experiência agradável entre as pessoas mais ricas do planeta, não foi? Percebe-se que o casal de jovens partilha a mesma consciência social de Cristiano Ronaldo quando há uns anos soltou com mestria: “Soy guapo y rico y me tienen envidia”.
A merda, matéria que o realizador utiliza para colar várias cenas do filme, surge quando uma mosca invade o espaço de Carl, a (fingir?) ler o pesado Ulysses de Joyce, e Yaya, encantada com o charme Tony Ramos de um trabalhador do navio, versão satírica do deus grego. Carl, sempre acompanhado pelo voo da mosca, incomodado com a situação tensa e tentando reprimir o desejo sexual de Yaya (pelos corpos pobres, sujos, brutos) decide logo usar o (recém) privilégio a que tem direito e apresenta queixa da conduta do tripulante a Paula (Vicki Berlin), alguém que sofre com uma neurose de rigor, o típico caso que desembocará em burnout, e que motiva toda a sua equipa de camareiros com lemas como: Dinheiro! Dinheiro! Dinheiro!, e os convence, sem acidez alguma, que se se portarem bem e disserem sempre: Sim!, poderão receber uma boa gorjeta.
Umas cenas depois, Carl apercebe-se da atitude de merda que teve (aqui já sem a presença da mosca) ao ver o tal deus grego despedido, de volta a terra. Afinal a sobrevivência dos pobres pode ser apenas um jogo nas mãos dos privilegiados.
Quando estamos há tempo suficiente dentro do navio, começamos a serpentear pelos vários círculos de Dante. Quanto mais abaixo no navio, mais próximos do Inferno, tal como há uns milénios nos navios negreiros. Cá em cima, somos apresentados a uma casta predestinada ao sucesso, um rol de personagens tão dignos deste sistema tão pouco meritocrático que poderia encaixar no epíteto “dinheiro sujo” criado por Joseph Beuys.
Um russo milionário bronco, que vende merda e tem orgulho disso, acompanhado pela sua trophy-wife Ludmilla (Carolina Gynning) e a branquíssima Vera (Sunnyi Melles). Dimitry (Zlatko Buric) aprendeu, no pós-URSS, como funciona o capitalismo: “estar no sítio certo, à hora certa e não deixar o dinheiro dormir”. Ainda há um casal de ingleses que enriqueceu com a máquina que faz as democracias nascer (as armas) e que desaparece do filme, ironicamente, por causa de uma granada. Uma alemã que sofreu um AVC e apenas diz “In dem wolken” (nas nuvens). Um sueco muito, muito rico Jarmo (Henrik Dorsin), parecido com um Lenine de fato e gravata, sofre de solidão aguda e usa o dinheiro que tem para oferecer relógios de luxo a quem o fizer sentir menos miserável. E Thomas Smith (Woody Harrelson), auto-proclamado marxista, Capitão americano que se recusa a sair da sua camarata durante dias, entregue ao álcool e ao ócio. Paula insiste em relembrar o Capitão da importância da sua presença no Jantar em que será protagonista.
Essa obsessão dos super-ricos pela presença do corpo e da farda do Capitão durante o jantar serve apenas mais uma das preocupações pueris destas classes dominantes, que passam o dia naquele navio com preocupações como a de um casal de criadores de software, que insiste na limpeza das velas do navio, apesar de não estarem num veleiro. Perante tudo isto os trabalhadores devem sorrir e dizer Sim!, perpetuando um ciclo de humilhação controlado por Paula.
O jantar do Capitão acontece na pior altura possível, em plena tempestade. Sorridente, o subversivo Capitão entrega-se ao álcool e a um hambúrguer. Os ultra-ricos preferem o que o seu dinheiro pode pagar. O zénite da civilização, as refeições de alta cozinha e champanhe, luxos desnecessários perante a sobrevivência com que serão confrontados. Há frascos de nutella vindos de helicóptero. Tanta sofisticação e poses respeitosas terminam num festival de vómitos e excrementos (sabemos que se fosse um banho de sangue era um filme de Tarantino).
No final de contas, uma certeza nos purga: somos todos humanos, apesar de nos tentarem convencer que uns são mais humanos que outros. É interessante como aqui os mais protegidos da sociedade acabam por ser salpicados pela sua inerente sujidade. A merda continua a pairar sob o filme e adivinhem quem aparecerá para limpar tudo isto?
No último dos círculos, invisíveis a todos, junto ao Inferno, os trabalhadores asiáticos dispostos a tudo para sobreviver. E é com toda esta merda que o navio colapsa num naufrágio moral.
Um desconforto instala-se em qualquer espectador que saia da sala e se depare com um empregado a levantar o seu tabuleiro de comida ou a limpar a rua onde está. Depois daquela humilhação a que os trabalhadores são sujeitos sob os caprichos dos que comandam os seus corpos, comportamentos, ideias. Recordamos os ensinamentos de Paula e imaginamos a formação daquelas pessoas: digam apenas: Sim!, nunca digam: Não!
A falta de consciência de classe, a alienação atinge o clímax durante uma cena entre Vera e Alicia. A milionária Vera pergunta à empregada Alicia qual o seu maior desejo e a resposta vem em forma de silêncio. Então, Vera ordena: I must command you!, e Alicia entra na piscina com ordem de diversão. Noutra situação todos os trabalhadores são obrigados a vestirem calções e fatos-de-banho e a escorregarem até ao oceano para os ultra-ricos assistirem. No limiar do absurdo laboral, já ultrapassámos qualquer fronteira de (outra) humilhação. A diversão transforma-se em ordem e serve para demonstrar como o realizador tem prazer em virar o tabuleiro dos jogos sociais e misturar tudo o que tomamos como imutável, desde os papéis de género, às relações de poder, de trabalho aos desejos.
Impossível assistir a estas cenas e não recordar a obra do artista contemporâneo espanhol Santiago Sierra. Uma performance proposta pelo autor consistia em fazer trinta trabalhadores, contratados pelo salário mínimo, recomendados pelo Serviço Nacional de Emprego, a preencherem mil cópias de um caderno em branco, repetindo a frase ‘El trabajo es la Dictadura’ (O trabalho é uma ditadura); ou quando pagou a quatro prostitutas uma dose de heroína para tatuar uma linha preta nas suas costas, ou ainda, quando reuniu mulheres romenas nos corredores da Casa do Povo em Bucareste para pedirem dinheiro aos espectadores. Para além de diversas leituras, podemos concluir que o dinheiro permite mesmo tudo.
O capitalismo apocalíptico presente naquele iate alimenta a fome violenta dos piratas, que aproveitam para atacar este micro-universo de milionários. A pirâmide social estabelecida no navio começa a ser dissolvida pelo naufrágio, até por fim ser abalada dentro do mundo natural.
A partir daqui, o status quo é suspenso. Uma revolução (involuntária) acontece, metáfora também para o que poderá suceder a este sistema, que produz desigualdades até o planeta resistir. Ao ver os sobreviventes do iate de 250 milhões de dólares à beira-mar, como não nos confrontarmos com as imagens de refugiados que chegam às mesmas areias mediterrâneas?
Esta praia, que se torna inferno para alguns personagens, são terreno para Abigail (Dolly De Leon) dominar e inverter totalmente as classes. Antes empregada de limpeza, agora é ela a Capitã. Tem um barco salva-vidas e com mantimentos, sabe pescar, fazer uma fogueira e é a única pessoa na ilha que tem tecto. Ficam claras as novas regras: quem melhor sobrevive na natureza, domina o grupo composto por Carl e Yaya, o oligarca da merda, a senhora do “in den wolken” e um membro do staff. E se este filme se olha ao espelho com o cinema-espectáculo, por vezes exagera e não respeita a inteligência do espectador, tornando demasiado explícitas duas ou três situações, como esta que serve para abordar o racismo: o membro do staff que, por ser negro, é confundido com um pirata.
Quando vemos a nova comandante corrigir os inferiores – “This is bad, this is very bad” – lembramos o oligarca russo. E aqui não consegui suster o riso, experiência deliciosa neste filme, onde as gargalhadas na sala são dessincronizadas, tal como a falta de harmonia social presente nesta obra. A anterior empregada de limpezas usufrui agora de um poder que lhe permite satisfazer os desejos carnais e toma Carl como seu escravo sexual. Exceptuando Abigail, percebemos que todos os outros personagens desejam voltar à normalidade fora da ilha.
Não toleram esta inversão de papéis que permitem ao vendedor de bugigangas africanas ter o seu destino nas mãos, ser o vendedor de praia e pobre que pode salvar a burguesia. Não toleram um mundo onde o ouro dos anéis ou a prata do colar (que o oligarca russo tira do corpo da sua mulher já morta) de nada sirvam.
Ruben Östlund esclarece desde o início que O Triangulo da Tristeza é político e que vai usar e abusar da demagogia e da simplicidade para clarificar a sua metáfora final: a falência do capitalismo para grande parte da população. Ele quer debater, recusando o dogma de este ser o único sistema possível.
Por fim, devo notar que a crítica do nosso país, curiosamente os habituais opositores do politicamente correcto, recusa sequer reflectir sobre qualquer um dos temas que o realizador tenta esfregar na nossa cara durante duas horas e meia. Não interessa debater a desigualdade de lucros pornográficos, enquanto a fome definha em forma de escravatura. Aniquile-se qualquer diálogo sobre a urgência climática. E essa postura torna toda a provocação cinematográfica ainda mais deliciosa. Sim, o capitalismo cria cada vez mais desigualdades, há cada vez mais merda à nossa volta, mas muitos insistem em ignorar (não é também desta alienação que o filme trata?). Então, como poderiam os visados deste filme analisá-lo?
A falta de distância que incorre da pobreza intelectual serve para simplificar a obra, tudo é apelidado como “básico”, “ridículo”, “caricatural” ou “estereotipado”. Essa crítica desculpa apenas este excesso do realizador, pois os seus outros filmes (onde critica alvos mais fofinhos, como o mundo da arte, dos media ou as crises conjugais) foram bem conseguidos. Ficamos, por momentos, a pensar que a Palma de Ouro pode ter sido engano ou que não vimos o mesmo filme que esses críticos do Expresso, Observador e outros veículos que gostam de gráficos e números factuais.
Podem ficar com mais este dado: se os 10% mais ricos do mundo são responsáveis por metade das emissões de carbono mundiais e os 50% mais pobres são responsáveis por 10% das mesmas, como podemos ignorar as reflexões deste filme?
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