“As pessoas cansavam-na ultimamente” (18): é este cansaço de estar na companhia de outras pessoas, mas sem nunca se querer estar definitivamente sozinho, que pauta a existência das personagens de Maria Judite Carvalho. Este segundo volume das suas Obras Completas, como já acontecia no anterior, apresenta-nos a uma miríade de pessoas unidas por uma solidão esmagadora. Jô e Paula conversam durante horas, mas apenas através do telefone, com a segurança dada pela distância e pela mediação do aparelho mecânico, mas assim que Jô desliga o telefone, a casa é tomada de um silêncio assombroso. “Sem projetos e sem esperanças” (20), é através de Paula que Jô vive, ao apreender as memórias e histórias de Paula como se fossem suas. Dividida entre dois homens e num impasse quanto ao casamento com um deles, Jô é constantemente relembrada de que “isto não é vida” por Paula, uma marca já presente no primeiro volume de contos, Tanta Gente Mariana, também ele um álbum de retratos envelhecidos pelo tempo, a única força que parece mover-se nestas narrativas. Em Tudo Vai Mudar, título esperançoso que contrasta com a inércia das personagens que povoam o volume, Fausto exprime o desejo que parece viver escondido em todas elas, um momento raro nestas narrativas marcadas pela incapacidade de agir:
“Observar com atenção tudo aquilo que deixa, tudo, bem de frente, por uma vez sem receio, e verificar que não tem pena de se ir embora. Não fugir, não se escapar pelas ruas transversais, não se esconder na primeira porta aberta. Não sonhar. Sobretudo não sonhar” (75).
É a imagem de Fausto a atirar-se para a frente de um carro, determinado a morrer, apenas para recuar no último segundo, que melhor captura o movimento de avanço e retrocesso que desenha o percurso das personagens, entre o agir e o arrependimento que surge mesmo antes da ação, num movimento de pêndulo entre a apatia e a tomada de ação, dramática e radical. Tudo efetivamente muda: é um homem que o salva da morte, ao puxá-lo para si, o mesmo homem que lhe oferece cognac e um fato novo, com a promessa de que ajudará Fausto, farto da mulher envelhecida, da casa bafienta, dos sapatos rotos. É a ironia omnipresente da obra que manda o corpo de Fausto para debaixo de um carro, involuntariamente, o fato novo estragado e “um mistério indecifrável para Isaura e para a mãe” (84).
Os dias são longos e sem nada para fazer e as noites, o momento mais assustador do dia, quando os medos e a ansiedade surgem. Existe nestas personagens uma grande vontade de agir, mas falta a energia e a vontade de o fazer, enquanto “pensava[m] com labor e intensidade em coisa nenhuma” (93). As paisagens não têm barcos, que sugerem movimento, e nas casas ficcionais de Maria Judite Carvalho habita apenas a inércia própria de quem vive longe do mundo, colecionando pequenos afazeres domésticos, rostos e empregos. Não acontece nada terrivelmente marcante ou excecional nestes vislumbres do universo íntimo. Os dias sucedem-se, as pessoas também e Maria Judite Carvalho surge como uma diarista do quotidiano e das inquietações mais humanas: a solidão, o tédio e o paradoxal medo da mudança pois “isso de felicidade … não é um estado inerte, pois não … vai mudando com o tempo” (118).
A narrativa é construída no espaço liminar entre o silêncio que emudece e o momento em que as personagens parecem estar prestes a falar, a agir, ou até a morrer, o momento em que deixam de ser “uma ilha pequena, sem arquipélagos, e à volta o oceano desconhecido e um nevoeiro tão denso” (72). “Algas, búzios mortos e esqueletos de navios” (73): é sobre uma natureza morta que estes muitos rostos se projetam, dissociados de si e atormentados pela incapacidade de chegar aos outros.
Por defeito profissional, a Ana Carvalho escreve de acordo com o novo desacordo ortográfico.
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