O Paço de Giela, localizado na freguesia de Giela, concelho de Arcos de Valdevez, monumento nacional cheio de história, construído no início da Idade Média, pertence, desde 2009, à Câmara Municipal dos Arcos de Valdevez. Tendo sido totalmente recuperado, está aberto ao público desde 11 de Julho de 2015, dia em que aquele município celebrou os 500 anos do seu foral. Visando a dinamização daquele monumento, a edilidade arcuense vem promovendo as “Noites do Paço”, num espaço próprio, idealizado e construído para a música, com condições acústicas de excelência e um ambiente extraordinário. No passado dia 17, tivemos o privilégio de assistir ao concerto do pianista Filipe Raposo (n. 1979) em que apresentou Øcre (Tinta-da-China/Lugre Records, 2019), o seu mais recente trabalho, sucessor dos memoráveis First Falls (2011), A Hundred Silent Ways (2013), Inquietude (2015) e Live in Oslo (2018).
Pianista, compositor e orquestrador, Filipe Raposo iniciou os seus estudos pianísticos no Conservatório Nacional de Lisboa. Tem o mestrado em Piano Jazz Performance pelo Royal College of Music (Stockholm) e foi bolseiro da Royal Music Academy of Stockholm. É licenciado em Composição pela Escola Superior de Música de Lisboa. Enquanto orquestrador e pianista tem colaborado com inúmeras orquestras europeias.Como pianista em nome próprio, tem-se apresentado em vários festivais de Jazz europeus, designadamente o Festival de Jazz do S. Luiz, Festival Internacional Douro Jazz, CAOS – Fasching Jazz Club Stockholm, New Sound Made Jazz Fest. Stockholm, Vilnius Jazz Festival, International Festival of Jazz Piano – Prague. Colaborou com alguns dos principais nomes da música portuguesa como Sérgio Godinho, José Mário Branco, Fausto, Amélia Muge ou Carminho. Colabora regularmente como compositor e intérprete em Cinema e Teatro e desde 2004 é pianista residente no acompanhamento de filmes mudos na Cinemateca Portuguesa.
Num diálogo íntimo, potenciado pela proximidade entre o pianista e a plateia, Filipe Raposo foi-nos conduzindo por este livro-disco Øcre, pleno de peculiaridades. Após apresentar a primeira peça – “No princípio era o fogo” – abertura deste “ensaio sonoro”, como lhe chama, explica-nos que Øcre é apenas a primeira parte de uma trilogia que corporiza uma verdadeira reflexão artística. Com este trabalho-ensaio, para além da música, passa pelo universo cinematográfico e literário para, de forma holística, conceptualizar o simbolismo associado a um sistema ternário de cores: vermelho, preto e branco. O segundo volume desta trilogia, dedicado ao preto, sairá em 2021, com o título “Obsidiano”, a pedra vulcânica usada para a construção das primeiras ferramentas na Idade da Pedra, e encerrará em 2023, com variações sobre o branco, fazendo a ponte, geograficamente, entre o sul (ocre) e o norte (branco) da Europa.
O ocre, uma variação do vermelho, tendo já em si um significado simbólico imenso, possui uma série de outras representações que Filipe Raposo quis trabalhar. Como nos explicou, o ocre é o óxido de ferro, a cor mais frequente à face da Terra, presente desde a primeira representação de arte na história da humanidade: as primeiras pinturas rupestres. A dramaturgia do disco foi moldada de acordo com diferentes símbolos relacionados com essa cor: a referida relação com o nascimento da arte, a ambição, a paixão, a vida e a morte, a relação mística e a divindade, o sangue e o fogo.
O jazz, a música erudita e o cancioneiro tradicional continuam a ser as fontes primordiais de inspiração de Filipe Raposo. “Compor ou estar em frente ao piano implica, antes de mais, saber escutar o passado, estar atento à primeira manifestação de arte que sabemos existir, conseguir recuar e ser um elo desse primeiro golpe de asa que nos elevou da condição animal e nos colocou na condição de deuses”, escreve no texto introdutório do belo disco-livro, que inclui textos de apresentação do artista gráfico António Jorge Gonçalves e de Sérgio Godinho. Cada peça é também acompanhada de textos do músico e de outros autores (como Jean-Jaques Anneau, Almada Negreiros e Goethe), juntamente com pinturas de Sérgio Fernandes, da série “I don´t come to bow, I come to conquer”.
Voltando ao alinhamento do livro-disco, temos em “No Princípio Era o Fogo”, uma peça plena de contrastes (durante o concerto, as mãos hipnóticas de Raposo percorrem o piano, transformando brasas adormecidas em fulgentes labaredas vivas), que nos remete para a maior conquista da humanidade. Segue-se a belíssima melodia de “Blombos Cave”, baseada no coral de A Paixão Segundo São João, de Johann Sebastian Bach. Nesta peça, conforme nos explica, o compositor-intérprete evoca a caverna localizada na África do Sul, considerada a primeira oficina de produção e armazenamento de ocre. Introduzida pelas palavras de Almada Negreiros – “Escuto estes desenhos como a um homem do campo que diz, sem querer, coisas mais importantes do que o que está a contar, e que põe tudo à mostra sem dar por isso” –, a terceira peça, “Figurado”, é ritmicamente mais intensa, com temas circulares que se vão ganhando novos contornos. “Mefistófeles”, porventura a peça mais “jazzística”, parte de um motivo central a que volta recorrentemente. Aqui inspirou-se no poema trágico Fausto, de Goethe, “no pacto de sangue mais conhecido da história da literatura”, assim como no mito e na alegoria do desejo, remetendo também para o Jardim do Éden, para Adão e Eva, o fruto proibido e a “fome” de conhecimento que este representa. Segue-se “A Um Deus Desconhecido”. Intensamente lírica, esta peça inspira-se na divindade pré-romana Endovélico, deus da cura e da terra, protector da vida após a morte, venerada na Lusitânia a sul do Tejo. A ligação íntima do pianista à música portuguesa está bem representada na forma como trabalha temas populares. A partir da tradição musical transmontana, apresenta-nos uma verdadeira dança viva em “Romances e Litanias”; já a melodia açoriana “Ó Meu Bem”, lembra-nos o ocre que emana das profundezas da Terra. A voz cristalina de Rita Maria escuta-se em “Oblivion Soave”, num belo arranjo da ária de Arnalta, da ópera L´Incoronazione di Poppea, de Monteverdi, estreada em Veneza no Carnaval de 1643. Segue-se “Ritos e Encantamentos”, uma verdadeira canção em que as palavras são apenas intuídas por quem a escuta, inspirada na “Alegria da Criação” de José Afonso e que nos remete de novo à Terra “feiticeira, Mãe de todos nós…”. “Lamma Bada”, de melodia enigmática, é um antigo “muwashshah”, composição poética culta própria da hispânia muçulmana, assim como um género musical secular árabe do Al-Andalus, um legado que há muito interessa ao pianista. Em “Isaac”, Filipe Raposo pega no tema bíblico (o mito de Abraão e Isaac) e transfigura-o numa investigação musical sobre autoritarismo e morte, concluindo: “na minha história, [Isaac] não sobreviveu.”. Raposo regressa a Bach (suíte inglesa em sol menor), para com “Sarabande” fechar com chave de ouro um disco magnífico.
Naquela noite no Paço partilhámos os mitos de que é feito Filipe Raposo. Guardamo-los connosco neste livro-disco, belíssima peça de arte. E quando pensamos numa frase para rematar este texto, apenas nos ocorre o que foi dito por Sérgio Godinho na apresentação de Øcre: “Mas depois olho para o texto do Filipe e vejo que estava tudo dito. Tudo o que eu ia dizer ainda sobre a música e a cor, disse ele. Fico interdito e feliz. Por alguém ter pensado o que eu ia pensar, e nas palavras certíssimas, mas acima de tudo na tal música fulgurante que mistura todas as cores que queremos ouvir.” Deixemos, pois, a obra falar por si. Escutemos apenas.
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