Comecemos por constatar o óbvio: a Odisseia de Homero é um dos textos fundadores e fundamentais da literatura ocidental, pela estrutura, longevidade e influência que exerceu em quase tudo o que se lhe seguiu, incluindo a própria Bíblia (que antecede, já que na altura em que foi passado a escrito, os livros do Antigo Testamento ainda não tinha sido terminados), a Eneida de Virgílio, Os Lusíadas de Camões e tantas outras expressões artísticas, como O Senhor dos Anéis de J. R. Tolkien ou muita da filmografia de Spielberg.
São inúmeros os episódios da Odisseia que viriam a fazer parte da cultura ocidental, como “a teia de Penélope, as Sereias, o Ciclope antropófago, (…), o saque de Tróia por meio do estratagema do cavalo de madeira, a magia de Circe, o amor sufocante de Calipso, a doçura de Nausícaa.” (19) É um texto imenso, tanto em extensão quanto em alcance, em forma de prosa poética (o “primeiro romance em verso” (28)) e dotado de personagens modelares como Odisseu e Laertes.
Nascido da tradição oral, assim como o seu predecessor Ilíada, também atribuído a Homero (já que há quem defenda que ambos os poemas são anónimos), foi fixado na forma escrita aproximadamente no VII A.C., e conta-nos as aventuras de Odisseu, o herói clássico mais humano. Na Odisseia, o Destino deixa de condicionar as condutas e “ficamos com a ideia de que existe uma relação de causa e efeito no sofrimento humano: os homens sofrem porque praticam a injustiça, diz Zeus no momento inicial do Concílio dos Deuses. (…) Há uma abertura dos deuses em relação ao ser humano” (28) e são introduzidas novas concepções “mais modernas – para as concepções de crime e castigo, que darão mais tarde, aos tragediógrafos do séc. V (e aos romancistas russos do século XIX), amplo campo de manobra.” (28)
Nesta nova edição, com a chancela Quetzal, o Prémio Camões Frederico Lourenço apresenta um trabalho actualizado (a edição anterior era da Cotovia), com extensas notas no final de cada um dos 24 Cantos, uma cronografia dos factos do poema (para o seu mais correcto enquadramento e compreensão) e uma explicação da estrutura do verso homérico, bem distinto em sonoridade e ritmo da poesia a que estamos habituados. A complexidade dos 12000 versos da Odisseia é, deste modo, debelada por um estudo esclarecedor e viciante para as mentes ávidas de saber.
Como nos diz Frederico Lourenço nas notas ao derradeiro Canto 24: “Mas uma coisa ficou certa ao longo destas quase 700 páginas: a leitura da Od. é a mais extraordinária das viagens, em que nos confrontamos com toda a riqueza da experiência humana. Ao mesmo tempo, há o factor não dispiciendo do prazer incomparável que o poema oferece a todas as suas leitoras e a todos os seus leitores. O que acontece a cada leitor da Od. quando chega ao fim do poema é algo que, na verdade, as Sereias do Canto 12 anteviram (12.188): «depois de se deleitar, prossegue caminho, mais sabedor».” (676).
Um livro essencial em qualquer biblioteca, uma sugestão que fará muito bibliófilo feliz este Natal.
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