Sempre que falamos de Frida Kahlo vida e obra confundem-se. Se é certo que, na prática, talvez seja impossível dissociar a vida da obra na criação artística, não é menos verdade que, no caso de Frida Kahlo, todo o seu legado o artístico é o espelho do seu trajeto pessoal. Nas suas pinturas, conseguimos ver o seu percurso trágico e apaixonante, forte e revolucionário, de uma forma invulgarmente fiel e pungente. Evocar Frida, a pintora mexicana que viveu com, o também pintor, Diego Rivera uma história marcada por uma enorme cumplicidade artística, um envolvimento pessoal, social e político revolucionário, onde imperavam sentimentos e marcas controversas feitos de amor, traição, dor, doença e tragédia, é resgatar o seu passado e estilhaços das suas memórias. Falar das cartas de Frida, é falar dos seus testemunhos e de um percurso que exerce até hoje, mais de 50 anos depois do seu falecimento, em 1954, um fascínio enorme sobre um público devoto e intrigado com uma personalidade tão forte, inebriante e subversiva. Por isso, o espetáculo Onde não puderes encontrar amor não te demores, em cena no Teatro Taborda (um espaço digno de visita na costa do castelo, quanto mais não seja pela vista privilegiada sobre Lisboa com que o seu bar/café, de visita obrigatória, nos presenteia) só podia estar envolto em expectativa.
Claro que Daniel Gorjão, diretor artístico do espetáculo, não ignora nem podia ignorar o que representa o nome de Frida Kahlo, retratada na literatura, no cinema, presente recentemente numa belíssima exposição no Instituto Português de Fotografia, no Porto (com direito a visualização de um documentário particularmente interessante no final, sobre o percurso pessoal e artístico da pintora). As melhores expectativas foram alimentadas no início do espetáculo, enquanto o corpo nu de João Villas Boas se arrastava sobre o palco, deitado e enfermo, interpelando-nos com o testemunho de Frida, da dor no seu longo internamento, da falta do pai e da mãe, do cansaço que lhe causava a agitação de pessoas que lhe passavam pelo quarto, faz a promessa de que a peça nos leve até esse estreitamento entre corpo e alma. A escolha de um homem para encarnar Frida (bissexual, masculina em muitos dos traços físicos e comportamentos, desafiante nessa delimitação da fronteira do género) poderia ser uma escolha algo disruptiva, sobretudo quando a evidência do nu se assume como uma marca do espetáculo e o corpo é um elemento extremamente forte do ponto de vista cénico. No entanto, é na transição destes primeiros momentos que se inicia a deceção. O corpo é só um corpo másculo que arrasta muletas e saias de flores, adereços que não há como dissociar de Frida, mas a dimensão de intervenção política na carta em que confronta as contradições, traições do estalinismo ao marxismo, e se aventura pelo flamejante trotskismo (não nos refirimos a essa novela da paixão por Trotsky que também inspirou a literatura), sem a sabotagem estalinista, parece consumida por uma caricatura cénica de Villas Boas, que dir-se-ia encarnar cartazes socialistas do pós-guerra, combinados com a imagem olímpica de um atleta da ex URSS.
https://www.youtube.com/watch?v=vq459KFO-l0
Conhecendo o percurso de Frida, é inevitável um desalento enorme ao ver que a peça encerra ao som do grande hit de Sinead O Connor, ‘Nothing compares to you’, cantado por João Villas Boas. É uma espécie de retrato forçado (fingir não pode ser!) de desesperança de Frida (depois da traição de Diego?), quando a esperança foi sempre o reverso da medalha da dor infinita (física, sobretudo, mas não só) que lhe consumia os dias. O espetáculo termina com quase tudo por dizer e sentir sobre a pintora, que parece ter desaparecido depois dos primeiros minutos de espetáculo. E é pena. Frida enche qualquer palco e era ela que queriamos ouvir, as suas palavras guardadas com tudo que traziam dentro. Faltou o selo, talvez, porque as cartas não chegaram ao destino.
Por defeito profissional, Joana Neto escreve de acordo com o novo desacordo ortográfico.
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