Orgia começa pelo final.
“Pronto, eu fui um homem diferente em vida: é esta a razão pela qual me perguntei como é que pude viver em paz, do lado da ordem.
É simples: escondendo de mim mesmo e dos outros a minha diversidade.
Ela nunca foi examinada, compreendida, aceite, discutida, manipulada. Permaneceu virgem tal como veio ao mundo, comigo (ou com a minha infância).
E por isso agiu apenas.
(…)
Bah, eu não consegui responder a estas perguntas senão confusamente, repito, uns instantes antes de me enforcar.”
O enforcado semeia pistas para a tragédia. Uma orgia que nada tem de explícita, com um final anunciado. Ninguém espera redenção ou ressurreição dos mortos. Com toda a violência física oculta (descarregada sobre o cenário ou subentendida, o que acaba por conferir um carácter mais etéreo ao espectáculo) sobram-nos palavras, e é em seu torno que gravitam todos os elementos do espectáculo, desde a interpretação, à dramaturgia e encenação, desenho de luz, banda sonora. Todos coordenados de forma cuidada e subtil (à excepção da impositiva arena de argila). Neles se perdem as personagens e com eles o público. Sem desorientação, apesar da verborreia e do breu, pois o estado de alerta é constante. O receio de que algo se descontrole e precipite o pior pressente-se. Hoje, talvez mais do que nunca nesta geração, o medo é real e veio connosco. Silêncio pesado, reverencial. No seu negrume e impulsividade, um casal anónimo (Beatriz Batarda e Albano Jerónimo) abandona-se num suposto quarto, (aqui a tal arena circular de argila), que parece arder como lava sob os seus pés, prolongamento da ebulição e do penoso ritual de voltar a pisar o mesmo chão.
Começa um jogo já repetido, perguntas e respostas mecânicas ditas por corpos e perfis vazios. Um mise en abîme cénico, filosófico, emocional, sem fim. Desenha-se em cena uma coreografia de poder, desequilíbrio e escape ao peso inexorável de um quotidiano eternamente tépido, esticado ao limite do tolerável. O homem (Albano Jerónimo) em crescente inconformismo, retirado daquele presente mas ansioso por o mutilar por um vislumbre de realidade visceral e imediata.
A mulher é um espectro. Move-se com o destino final em perspectiva. Lenta mas nunca dolente. Imaterial, ainda com palavras e gestos que a prendem ao chão. Mas a libertação está nos seus olhos, pendurada em cada sílaba soletrada como ode de despedida. Só Beatriz Batarda poderia desaparecer assim naquela alma. Saímos por breves instantes da apneia, na presença desse sacrifício tão completo do Eu pelo Outro. São dois na sua solidão, faces que nunca se olham, eternos na mesma moeda.
“O mundo da vítima e o mundo do carrasco são mundos isolados, de solidão.
Eu para ti não existo, tu não existes para mim.
E isto aumenta ainda mais a minha felicidade.”
O homem é o peso inamovível desta unidade. Debate-se com a articulação racional e (mais tarde desesperada) de um sentimentalismo quase barroco, não fosse a sua objectividade e ausência de grandiloquência ou auto-engrandecimento.
Ambos cresceram presos em mundos similares, em que todos falavam (e falam ainda) sem nada dizer, e os actos/tarefas (o trabalho) e a vergonha substituem as palavras subtraídas. Palavras caladas agora vociferadas na nossa cara.
“Mas dentro da alma, entretanto, o que é que acontecia? AS PALAVRAS NÃO DITAS PROCURAVAM INSTALAR-SE.
MULHER Sim, comigo também: mas nunca as soube pronunciar.
HOMEM Como era divino aquele silêncio cheio de vozes.
MULHER Onde não era necessário conhecer.
HOMEM Onde, por isso, bastava unir a própria voz que não falava, às vozes de todos os outros, à luz de uma manhã, nas paredes vermelhas erguidas do sol para a lua com o primeiro orvalho.
MULHER Aí nós só comunicávamos entre nós fazendo qualquer coisa. (…)
HOMEM Ensinando-nos a não falar, eis aquilo que fizeram de nós.
MULHER Pessoas sufocadas pela felicidade da vergonha.
HOMEM Sempre a mesma.”
Orgia é uma peça intimidante. Confronta-nos com a nossa pequenez, estas tentativas vãs na direcção da miragem da relevância diante de uma obra feita e eterna. Evoca Shakespeare (a mulher fala do seu corpo morto a deslizar no rio como Ophelia), Eros e Tanatos, Bataille… O peso do tempo – foi escrita em 1968 – não altera o seu poder (apesar das referências datadas ao “pequeno-burguês” e do seu pendor de crítica feroz ao capitalismo de massas). Construída como acto iconoclasta, supera essa dimensão, porque a construção de prisões em que nos encarceramos é indissociável da natureza humana. Aqui é o casamento, a família, a paternidade, a moral judaico-cristã. Escolhas que temos por voluntárias e se tornam confortáveis pelo estatuto social que conferem, para depois criarem a necessidade de fuga. O casal de protagonistas evade-se pelo suicídio. Mas entretanto experimenta no quarto uma folie à deux radical, sado-masoquismo sem palavra de segurança nem limites, um vale-tudo. O homem ainda acredita na libertação pelo avanço, uma esperança apesar do vazio, para depois se render às evidências.
O silêncio durante as cenas é sintomático do desconforto e espanto do público diante do negrume viscoso que decorre ao nível do olhar, sem qualquer elevação real ou dramática da cena. O único caminho é o chão, no pântano de uma vida medíocre.
Diante de um gigante encolhemo-nos. Pasolini fita-nos resoluto (encarnado em Albano Jerónimo na boca de cena) no prólogo:
“o que deve fazer quem é Diferente?/Negro, Judeu, monstro, o que és obrigado a fazer?/Reconstruir em ti a realidade, tornando-a novamente real?/Progredires também tu, desobedecendo, ao lado das leis da norma, e até das leis da Loucura?/Ou então…/deves pelo contrário aceitá-la – aceitá-la tal como a encontraste?) Não tens mais nada para fazer, diferente, senão perderes-te, para assim te reencontrares?”
Ocorre-nos a resposta final de Sónia ao Tio Vânia no clássico de Tchékhov “Que se há-de fazer, é preciso viver! (…) havemos de trabalhar para os outros agora e na velhice, sem conhecer descanso. E quando chegar a nossa hora morreremos docilmente e na sepultura diremos que sofremos, que chorámos, que passamos amarguras (…) – e descansaremos. Eu acredito, tio, acredito ardentemente, apaixonadamente…Descansaremos!”
Viver em liberdade é um acto perigoso e violento, porém essencial, mesmo quando significa a perdição.
Pasolini insta-nos a derrubar gigantes e as pedras que trazem consigo, a cada leitura ou quando honrado em palco, como é o caso em Orgia. Mas a inutilidade de tudo isto, a tentativa de fuga ao marasmo, o peso que nos empurra para o lugar que a sociedade nos reservou persiste. Acabou por matá-lo, como mata os protagonistas.
Pasolini acaba proscrito e assassinado porque exerceu a sua liberdade sem desculpas ou licenças. Escolheu a Arte para o fazer. O homem e a mulher de Orgia escolheram a morte.
De volta ao prólogo: uma vida sem culpa ou remorso, de cabeça levantada para os caminhos em aberto. Talvez seja essa a verdadeira liberdade, a revolução possível. Uma utopia (ainda)?
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Ficha Técnica
Texto
Pier Paolo Pasolini
Tradução
Pedro Marques
Direção
Nuno M Cardoso
Interpretação
Albano Jerónimo, Beatriz Batarda, Marina Leonardo
Instalação
Ivana Sehic
Desenho de Luz
Rui Monteiro
Assistência Desenho de Luz
Teresa Antunes
Figurinos
Sara Miro
Som
Óscar Correia
Fotografia
Susana Chicó
Direção De Produção
Francisco Leone
Produção Executiva
Luís Puto
Produção
Teatro Nacional 21
Direção Teatro Nacional 21
Albano Jerónimo, Cláudia Lucas Chéu e Frascisco Leone
Coprodução
Teatro Viriato – Viseu, Centro Cultural Vila Flor – Guimarães | Oficina
Apoios
Adelaide Castro, AMANDA, Circolando, Emanuel Abrantes, Ira de Jesus, João Rento Baptista, Lola Sousa, Mala Voadora, Polo Cultural das Gaivotas, Rodrigo Queirós
Agradecimentos
Pro Dança, Paulo Capelo Cardoso
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Foto © Raquel Balsa