Alexandra Lucas Coelho tem muito mundo na bagagem. Depois de diversos livros de viagens, de reportagem e de romance, esse vasto território que já percorreu volta a estar presente num novo projecto literário, aqui na sua estreia na literatura para os mais novos: Orlando e o Rinoceronte. Este é o primeiro volume das aventuras de Orlando, um menino de oito anos, de carapinha ruiva. Ruivo pela parte da mãe, bailarina, e com a carapinha herdada do pai, contrabaixista, que é guineense.
Orlando não consegue dizer a letra “l”, saindo-lhe sempre um “u”, adora futebol e tem pavor das folhas de papel e lápis de pintar. Tem um grande amigo, Tobias, que muito admira por saber fazer duas coisas dificílimas: a tabuada do 8 e desenhar. Mas na vida de Orlando, o maior problema é a miúda de 7 anos que vive no prédio da sua mãe (os pais do menino estão separados), a Cláudia: “Pior do que a tabuada do 8 só a Cláudia. A vizinha de baixo, muito mais nova, acaba de fazer sete anos, enquanto Orlando já fez oito. Devia olhar para as crianças da idade dela, mas não. Passa o tempo a persegui-lo nas semanas que ele cá dorme.”
A aventura começa quando o menino recebe uma carta do pai, que está na Rússia, com dois postais, um para si e outra para a sua mãe, Miranda. No seu, Orlando encontra desenhado um “rinoceronte-máquina” e a curiosidade leva-o a ligar, via Skype para o Rio de Janeiro, ao seu tio Tristão, um antropólogo que sabe tudo sobre rinocerontes. O tio Tristão diz a Orlando que aquele rinoceronte lhe faz lembrar um outro e conta-lhe então o caso do rinoceronte Ganda, oferecido em 1514 a Afonso de Albuquerque, Vice-Rei da India, que não pôde ficar em Lisboa e naufragou a caminho de Roma, e que foi tornado famoso pelo desenho tantas vezes reproduzido do artista alemão Albrecht Durer, que está exposto no Museu Britânico, em Londres.
É este o pretexto usado pela autora para nos falar da expansão portuguesa no mundo, através de uma escrita solta, desafiando-nos a revisitar o passado do nosso país, assumidamente com o propósito didáctico de escapar à narrativa mitificada dos Descobrimentos. Em declarações prestadas à imprensa, poucos dias antes do lançamento do livro, a 14 de Outubro de 2017, Alexandra Lucas Coelho, afirmava: “O que vamos fazer com o passado muda as coisas, muda o presente e muda o futuro. É importante saber que Portugal foi a maior potência esclavagista, isso faz parte da nossa história.”
Bem ilustrativo de tal desiderato é, de facto, este diálogo mantido entre Orlando e o seu tio Tristão:
“- Nesse tempo, os africanos eram usados como escravos – explica o tio Tristão a Orlando.
– O meu pai já me contou isso. Os avós mais antigos dele foram escravos – diz a criança.
– Pois, quer dizer que os teus avós mais antigos foram escravos – confirma o tio.
Orlando fica calado, a olhar para Tristão.
– Não tinha pensado nisso. É uma coisa má para mim?
– Para ti não. É uma coisa má que foi feita a muita gente.
– Milhões?!
– Sim. Muitos povos escravizaram gente. Só Portugal, um país tão pequeno, tirou vários milhões de pessoas de África. E fez uma coisa que ainda nunca tinham feito, levou alguns milhões para o outro lado do Atlântico.
– Para quê?
– Para trabalharem à força a explorar as riquezas do Brasil.
– Alguns eram da minha família?
– Se calhar… – Tristão sorri – E agora moram no teu cabelo, é como se os levasses para toda a parte – diz o tio. E para o futuro. Então é bom saberes esta história. Sempre que é contada eles ficam mais felizes, dançam lá nas estrelas, e será mais difícil haver escravos porque tu não vais deixar. E quem ouvir esta história também não.”
As ilustrações de Orlando e o Rinoceronte são igualmente de Alexandra Lucas Coelho, a que junta uma ou outra gravura ou pintura. A autora optou por mostrar a imagem do rinoceronte apenas no final do livro e reservar as últimas páginas do mesmo para um “Caderno para Desenhar Gandas”, onde cada um poderá desenhar os seus próprios rinocerontes.
A aventura, em si uma odisseia no tempo e no espaço, termina com a promessa de uma viagem à Guiné-Bissau, país “onde toda a gente tem o cabelo igual ao de Orlando”, mote para o segundo volume desta colecção.
Mais uma boa sugestão e ainda a tempo de fazer parte de um sapatinho neste Natal.
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