À saída do Rivoli, ouvimos alguém dizer “pensava que ia ficar mais chocado”. Tal reação diz muito da reputação de Milo Rau, amplamente projetada pelos meios de comunicação ao associar-lhe controvérsia, choque e provocação. O encenador e sociólogo suíço faz por isso, mas parece-nos que, como a reação do incógnito espectador dava conta, o choque está mais nas propostas de leitura de fenómenos sociais do que naquilo que coloca em cima do palco. E é sobretudo por isso que o trabalho de Milo Rau se destaca, não tanto pela suposta audácia de, como neste caso, apresentar um grupo de atores com Síndrome de Down em cenas do derradeiro filme de Pasolini. O desafio está na crise de consciência que pretende convocar no espectador. É por aí que apreciamos o espetáculo, tanto quanto deixamos o Rivoli com muitas dúvidas.
Os 120 dias de Sodoma questiona-nos enquanto seres de um futuro hipotético: a ciência permite-nos eliminar a possibilidade de existência de pessoas como as presentes em cima do palco. O futuro será sem eles, e nós estamos ali para sermos lembrados disso. Não há aqui subterfúgios: Rau utiliza os atores da companhia de teatro suíça HORA, todos com algum tipo de deficiência, para os colocar lado a lado com os dados sobre os ratios atuais de abortos após diagnósticos pré-natal que anteveem uma criança com Síndrome de Down ou outra deficiência. Na Suíça, 90% dos casos são eliminados, na Islândia já não há registo de gravidezes levadas a termo com este diagnóstico. Segundo Rau, é legítimo invocar o nazismo e os seus projetos de higiene social para descrever o que tentamos fazer ainda hoje com o aperfeiçoamento humano.
Esta peça-documentário abre com a referência ao filme de Pasolini, precisamente para traçar essa comparação histórica: um conjunto de privilegiados permitiu-se operar experiências sadomasoquistas num grupo de belos jovens italianos, homens e mulheres, na infame república italiana fantoche de Salò, durante a ocupação nazi do país. Os atores não-deficientes conduzem os atores deficientes no sentido em que realizam o filme – o de Pasolini – salientando as suas histórias pessoais nesta versão cénica. Pano para mangas no que a acusações de condescendência diz respeito. Um deles, por exemplo, é namorado de uma atriz que, por razões de saúde, não atua naquele dia, e ambos protagoniza(ria)m uma das cenas do filme, a de sexo entre dois jovens. Outras cenas: a do casamento escatológico ou a do jovem de punho em riste que é fuzilado, todas filmadas para vermos mais de perto os acontecimentos num ecrã acima do palco, obrigando-nos a partilhar um estatuto de voyeur.
https://youtu.be/FwO9EzDuAPQ
De facto, os excertos do filme aqui representados são interregnos da mensagem que Rau atira para cima da mesa: a questão de até onde queremos deixar ir a ciência, anda a par da questão sobre os limites da arte. Neste sentido, podemos até considerar que este espetáculo é tímido. Todos os diálogos sobre a deficiência com os próprios, o monólogo melodramático do pai que decidiu, junto com a esposa, abortar aos sete meses, a cena final da crucificação antecedida de um pathos do horror desencaixado do ambiente relativamente comedido até aí, perdem-se numa estratégia multidirecional de manipulação da consciência do espectador, no sentido de considerar o tratamento infligido à Síndrome de Down como uma nova forma de fascismo.
O atrevimento dos meios ligado a um distanciamento do encenador de um fim claro que os justifique é a marca que já tínhamos visto no espetáculo anterior, sobre o caso de pedofilia de Dutroux na Bélgica, com um elenco de crianças. O choque que não o foi nesse caso, voltamos a não o sentir neste. Ou talvez sim, mas pelas razões erradas. Se algo é imperdoável neste “Os 120 dias de Sodoma” é a disparatada impertinência de colocar um dos torturadores a declamar os primeiros versos da Fuga da morte de Paul Celan, expoente da poesia testemunhal sobre a experiência do Holocausto, enquanto recebe, de uma das suas vítimas, um banho de urina na cara. Abraçamos a crítica através da analogia com o fascismo, mas repudiamos veementemente a performatividade das palavras antológicas de Celan – “leite negro da madrugada/bebemo-lo ao entardecer (…)” – através de urina recebida, com prazer, pelo perpetrador. Se Rau não tivesse efetivamente limites, colocaria essas palavras na boca dos atores que considera serem as vítimas da nova eugenia: os atores com Síndrome de Down. Se algo nos chocou, foi este nonsense imperdoável. E muito mais do que esperávamos.
Por defeito profissional, Luís Pimenta Lopes escreve de acordo com o novo desacordo ortográfico.
Foto © José Caldeira / TMP
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