home Antologia, LITERATURA, TEATRO Os Belos Dias de Aranjuez – Peter Handke (Documenta, 2014)

Os Belos Dias de Aranjuez – Peter Handke (Documenta, 2014)

Escrita originalmente em francês em 2012 e estreada no mesmo ano em Viena, na sua versão alemã, Os Belos Dias de Aranjuez, de Peter Handke, começa assim: “E, de novo, um Verão. De novo, um belo dia de Verão. Um jardim. Um terraço. Uma mulher e um homem, debaixo das árvores invisíveis, apenas audíveis, com um suave vento de Verão que (…) marca o ritmo da cena. Uma mesa de jardim muito grande, vazia, entre a mulher e o homem. Sentam-se longe um do outro, ambos vestidos com roupa de Verão (…) como que fora do tempo. Eles próprios fora do tempo e fora de toda e qualquer actualidade e fora, também, de todo e qualquer enquadramento histórico e social – o que não significa que estejam fora da realidade – quem sabe se não será ao contrário?” Não parece teatro pois não? Como em qualquer obra, depende das expectativas que levamos para a leitura.
Demasiado longo, poético e vago para uma didascália, com uma literariedade problemática para o palco, este trecho abre uma miríade de possibilidades interpretativas, desde a óbvia referência à parábola de Adão e Eva (reforçada pela presença adiante de uma maçã vermelha lançada entre ambos), à possibilidade uma ficção consensual (entre as personagens, entre elas e o leitor/espectador e, por inerência, entre o autor e o leitor/espectador) para disfarçar o vazio que os rodeia (um possível Apocalipse, reforçado pela expressão “É Verão, como nunca antes. Talvez mesmo o último, quem sabe?” e pela ausência de tempo e espaço), ou até de serem anjos (ou demónios) que recordam a sua passagem pela vida e pela Terra, enquadrados que estão por um ambiente telúrico e paradisíaco, distanciados (vide didascália inicial) para evitar tentações.
O subtítulo um diálogo de Verão contém uma localização temporal e a componente formal do texto: uma conversa, por vezes dois solilóquios entrecortados. Mas mais do que isso, é um jogo. De evocação, sedução, escapismo e (re)construção da realidade do Homem e da Mulher, cuja relação se mantém incógnita. Os ecos platónicos de um Banquete, por exemplo, são evidentes na estrutura do diálogo e na condução da própria conversa que, tal como o tempo, flui ao ritmo do vento e das palavras (excelente tradução de Maria Manuel Viana, que deixa grande curiosidade em ouvir a toada do texto alemão e francês). No nosso português, resulta pelo texto no seu mais estrito sentido, sacrificando detalhes aliterativos ou gráficos em favor da imagética forte e da vivacidade emotiva das descrições, com primazia para as falas da Mulher.
Cumprindo com rigor as regras do jogo [que supomos repetido em momentos anteriores, por tédio talvez: “Faz-me perguntas, como estava previsto” (21) ou “Essa pergunta não vale, contradiz as regras do jogo.” (23)], fala-se de origens, da primeira vez, mas sobretudo de circunstâncias específicas de superação, contextual e subjectiva, emocional, através do gesto decisivo, a frase, a pulsão e a sua descrição marcante, uma luminosidade inesperada que revela um detalhe superlativo e eleva o banal à transcendência, numa “verdadeira vingança sobre a conspiração omnipresente e despótica do quotidiano contra o corpo e a alma.” (34)
Em ambas as iniciáticas histórias centrais, de descoberta do corpo e do sexo, os excrementos e várias sujidades bem terrenas são pesada presença e cenário, ao mesmo tempo que a paisagem parece acompanhar o acto sexual que desemboca num êxtase quase místico, em que a vingança dos acontecimentos banais e da liberdade física cede lugar a um “universo do corpo, ponto, e universo juntos. Dois corpos estendidos na noite do infinito./O tempo transforma-se em corpo e alma e cada A e cada O arqueja até à eternidade” (37). Deste choque entre a materialidade mais sórdida e a metafísica nasce o “amor, de todas as vezes.(…) Não em mim, mas à minha volta.” (41)
Pelo meio, as referências culturais vão adensando o ambiente, desde o próprio jardim onde decorre o diálogo, à maçã que atravessa sucessivamente a mesa que os separa, à citação directa de “Love is All Around”, da “Gata” e da Blanche Du Bois de Tennessee Williams, do teatro de Horváth, de “Redemption Song” e “Clementine”, num prelúdio para a lenta e inexorável contaminação do evocativo e idílico diálogo pela realidade, contrariada pela Mulher que grita, afirma a desilusão no amor, mas reitera o desejo de agarrar o tempo e dele disfrutar, num vislumbre de esperança na sua recuperação. “Cada ser procura o ser-outro, até mesmo o unicelular” (59) e “É um dia propício a encontrar o homem da minha vida” (61)
A escrita delicada de Handke, conciliada com o seu poder evocativo e o fogo lento em que deixa acção e desenvolvimento das personagens, empresta a esta peça a intemporalidade dos clássicos literários, ao deslocá-la do contingente para a libertar à mercê da imaginação sensitiva da leitor/espectador e, num outro plano, do encenador e dos actores.
A Arte imita a vida no que tem de melhor. Duas pessoas presentes, conversando cara a cara, carregam universos também nossos, na medida em que estejamos abertos a recebê-los. Celebrar o final desta dura prova à humanidade seria um bom pretexto para o retorno aos palcos deste texto magnífico. Fica a sugestão.

Mais Teatro AQUI

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *