home Antologia, LITERATURA Os cães ladram facas – Charles Bukowski (Alfaguara, 2018)

Os cães ladram facas – Charles Bukowski (Alfaguara, 2018)

Com a antologia Os cães ladram facas, a Alfaguara prossegue a publicação da obra de Charles Bukowski, uma das vozes maiores da poesia americana. A edição, organizada e prefaciada por Valério Romão, apresenta os poemas de modo cronológico-temático, conduzindo-nos pelos principais tópicos da obra de Bukowski: a escrita, o álcool, a hipocrisia, a infância, crua e fria, as corridas de cavalo, as mulheres, o desamor, o sexo, a morte.
O prefácio leva-nos para Los Angeles, primeiro numa infância dura, com um pai violento e uma mãe passiva, ambos presos às imagens esgotadas do american dream depois da Grande Depressão, na escassez de emprego, de dinheiro e de vida e, em seguida, para as ruas de uma cidade que, ao longo dos anos, se faz personagem e acompanha o poeta, através dos bares, das fábricas, dos amores, dos loucos solitários.
A poesia de Bukowski nasce na tensão entre a realidade crua, que o sujeito poético despe com violência, e a possibilidade da redenção. Na L.A. de bêbados, prostitutas, hipócritas ou seres banais, despedaçada no poema a golpes de desprezo, egoísmo e, por vezes de misoginia, podemos assistir

“ao milagre da imortalidade: / homens que chegaram como homens / partiram como deuses − / […] deuses que agora nos permitem continuar / quando tudo o mais nos diz para parar”. Esta possibilidade de salvação vem apenas através da escrita: “a poesia é o que acontece / quando nada mais pode. ” Só por ela o homem pode ser resgatado do banal, do convencional, e superar a morte: “a palavra é perigosa / e bela. // se vier por ti, / sabê-lo-ás / e serás o mais / afortunado dos / humanos. / nada mais / importará / e tudo o resto / importará.”

Valério Romão faz notar com justeza no prefácio que Bukowski é “Favorito das redes sociais, nos quais o eco truncado da sua vastíssima obra circula sob a formas de memes de teor mais ou menos motivacional”. É fácil perceber porquê. Muitos dos seus versos surgem como conselhos ao leitor, suficientemente irreverentes para serem interessantes, suficientemente límpidos para serem entendidos: “Vai ao Tibete, Anda de camelo. / Lê a Bíblia […] Mas não escrevas poesia.” (“Conselho amigável a imensos jovens adultos”) ou “tens de foder uma quantidade brutal de mulheres / […] e escrever alguns poemas de amor decentes. // e não te preocupes com a idade / e/ou com recém-aparecidos talentos. // apenas bebe mais cerveja […] // e vai às corridas…” (“Como ser uma grande escritor”) ou ainda “se não rebentar de dentro de ti / a despeito de tudo / não o faças. ” (“então queres ser escritor?”).

No entanto, é preciso mergulhar na ironia, na inteligência, na dor, no vazio, no sem-e-no-todo-sentido da sua obra poética, para vir à superfície e respirar com Bukowski nesses momentos em que a palavra parece surgir para salvar. Num mundo em que o telefone “é como um animal morto / que não voltará a falar” porque o seu amor morreu e Sócrates é um velho bêbado sentado no bar, como todos nós, a tentar sobreviver à noite seguinte, “tens de desistir de tudo, deitar / fora, deitar tudo fora. / tens de olhar para o que estás a olhar / ou pensar no que estás a pensar / ou fazer o que estás a fazer…” para seres fiel a ti mesmo.
Na verdade, a poesia de Bukowski procura destruir o espaço do banal, “esse lodo de trivialidades / que mata mais rapidamente que o cancro” e permitir que a loucura desafie a morte, esse circo que “está aí / desde o início, pelo meio e até ao / fim”. Pelo caminho, há homicidas, atacadores de sapatos, comedores de ópio, um desenhador de peixes, putos sujos, cães infernais, poucas histórias de amor, cavalos pendurados nas árvores, canários de infância mortos, a infância morta, e um pássaro azul a querer fugir do coração. Neste altar mundano da palavra, a tradução da poeta Rosalina Marshall, exigente e rigorosa, surpreende em alguns momentos pela beleza da expressão.
No fim da Antologia, sentimos que cumprimos uma narrativa, que fomos redimidos. Mas ficamos inexplicavelmente sozinhos… terrivelmente sozinhos, mas talvez mais humanos.

“lê / o que escrevi / depois / esquece / tudo.
Bebe do / poço de ti mesmo / e começa / outra vez”

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