Sempre que uma obra se destina a “selecionar” um top, seja ele o top cinco, o top dez ou o top cem de outras obras, a tendência é olharmos com desconfiança para esse ímpeto de aspiração a um pódio imaginário ou de criação de uma memória filtrada de supostos excedentes ou “menos bons”. Não é por isso, claro, que deixamos de tentar perceber uma de duas coisas: através da seleção feita, podemos chegar a conhecer – ou conhecer melhor – algum dos eleitos para essa “posteridade pessoal”? Ou, por outro: é, por via das escolhas, possível chegar a uma certa intimidade com o autor do crivo? Uma obra do tipo da que aqui lemos – Os cem melhores poemas portugueses dos últimos cem anos – para poder trazer algo de efetivamente interessante e que satisfizesse a avidez do leitor, teria de cumprir uma destas finalidades. E é com alguma pena que dizemos que não o faz.
É inquestionável que são de topo – e por isso também de escolha óbvia e incontornável – alguns dos poetas apresentados: que seleção dos melhores cem dos cem anos passados deixaria de fora a nossa Sophia, Ruy Belo, Herberto Hélder? É, também, verdade que José Mário Silva procurou algumas escolhas menos evidentes: Luís Quintais, Miguel Manso, Rui Knopfli. Na introdução, o necessário disclaimer: “Qualquer escolha desta natureza, mesmo no caso da obra de poetas que já sobreviveram ao crivo da posteridade e merecem um lugar no cânone, será sempre imperfeita, discutível, precária”. E, na linha do “quando Pedro me fala sobre Paulo, sei mais de Pedro que de Paulo”, prossegue: “uma antologia diz sempre mais sobre quem seleciona do que sobre a matéria selecionada.” Não chega.
Gostávamos de poder dizer que estas escolhas foram, para nós, um começo. Que os poemas aqui presentes foram dispostos de forma a tocar o leitor e o incentivar a ler um livro de poemas de cada um dos eleitos. Também podia dar-se o caso de esta obra cumprir uma espécie de finalidade evocativa. Sendo mais clara: uma obra mainstream – como o são, necessariamente, todas as obras que elegem “os melhores de” – seria mais coerente se fosse mainstream também nas escolhas, se apelasse à leitura emotiva ou às memórias de infância. Que, ao ler esta antologia, se dissesse “Ah! Pois é!” e se recordasse o choro das arcadas do violoncelo, as pessoas sensíveis que comem galinhas, a tabacaria. Também não.
E sobre o autor? Ficamos com vontade de saber mais? Antes de mergulharmos nos poemas da sua eleição, foi por querermos conhecer mais e melhor José Mário Silva que lemos este livro? (pensemos no que seria conhecermos as cem escolhas de poemas de Winston Churchill, ou os cem textos favoritos de Eugénio de Andrade, as figuras políticas que marcaram Nelson Mandela). A própria tentativa de divisão temática quadripartida – Retratos, Relatos, Desacatos, Hiatos – aparece forçada e, sobretudo, vazia de um significado que faça sentido e nos organize a leitura. Também não encontrámos, nos poemas escolhidos, um qualquer elo de ligação, um fio condutor.
Por princípio, sempre pensámos que um Livro é sempre um Livro. Não empobrece ninguém, ninguém se perde nem perde nada quando lê. Tem a virtualidade de nos enriquecermos e nos darmos a possibilidade de dizer: já li. Mas José Mário Silva parece ter organizado esta obra, mais do que pelos autores ou para o leitor, para cumprir um qualquer propósito pessoal. E esse, com algum lamento, diga-se, não nos encheu as medidas.
Por defeito profissional, Joana Aroso escreve de acordo com o novo desacordo ortográfico.
Mais recensões/crítica literária AQUI.
Interessantíssima a possibilidade de conhecer este livro.