home Antologia Os Intelectuais em Portugal na Idade Média – Armando Norte (Esfera dos Livros, 2020)

Os Intelectuais em Portugal na Idade Média – Armando Norte (Esfera dos Livros, 2020)

É possível que Os Intelectuais em Portugal na Idade Média tenha sido um dos livros mais injustamente ignorados do ano que passou. E nem será preciso atermo-nos ao campo da História. Um trabalho de enorme rigor, empenhado, vasto e com uma abrangência invulgar, que, no entanto, parece não ter chegado a tantos leitores atentos como aqueles que mereceria ter um livro desta natureza e com as qualidades que este, inequivocamente, possui.
Armando Norte parte de um pressuposto claro, neste seu livro: o de que a Idade Média, tal como a concebe a opinião geral – e a menos informada –, não tem razão de ser. Ou tem, mas não corresponde à verdade dos factos da História. Por conseguinte, é preciso ter em mente que a ideia do período medieval como época das trevas deverá ser, senão posta de parte, pelo menos, problematizada. Desde logo, pelo motivo mais óbvio: não há uma, senão várias Idades Médias. Trata-se, afinal, de um arco temporal de cerca de mil anos. Ao longo desse longuíssimo período de tempo, houve, naturalmente, transformações profundas, e nada, por assim dizer, foi como antes após esse amplo lapso temporal. Da Alta Idade Média – que prolonga a Antiguidade Tardia – até à Baixa Idade Média – que já antecipa a Época Moderna –, são, no fundo, dois mundos distintos os que se perfilam diante de nós. É sobretudo nessa fase final do período medievo que Armando Norte centra as suas atenções. O autor referir-se-á a uma «Idade Média plena», correspondente aos séculos XII e XIII, e à «Baixa Idade Média», propriamente dita, que coincide com os séculos XIV e XV, ou seja com os séculos anteriores ao dealbar da Idade Moderna.
Uma vez que Armando Norte estuda um período histórico de tal forma vasto e complexo, não deixará de proceder a amplas e consumadas panorâmicas, que permitem visões de conjunto e garantem ao leitor um acesso mais informado e abrangente a um conjunto histórico com sinais reconhecíveis, mas que requerem linhas de orientações precisas, chaves bem elaboradas, informação coordenada com saber e equilíbrio. Tudo o que o historiador fornece a quem lê:

«No mesmo espaço de tempo, a cultura ganhou uma importância acrescida. Nas suas vertentes de produção, transmissão e controlo do saber, foi uma área que o poder religioso nunca descurou, na sua ânsia de controlo político e social. Empurrados pelos favores da Igreja, apesar dela ou ostensivamente rejeitando as suas doutrinas, os séculos XII e XIII foram anos áureos em que se consumou a recuperação do Ocidente enquanto espaço privilegiado de conhecimento e de evolução científica, retomando a sua condição de liderança cultural.» (p.50)

Trata-se de contextualizações sobremaneira necessárias, uma vez que não é só a concepção menos informada acerca da Idade Média que dificulta o conhecimento daquele período da História; é também a complexidade dos fenómenos que nela decorrem, como também o que há de específico nos saberes a convocar.

«Os antecedentes mais próximos das universidades radicaram nas escolas anexas às gramdes igrejas catedrais, como a escola de Chartres, que foi, seguramente, um dos maiores centros científicos do século XII.» (p.60)

O núcleo duro deste livro, como se poderá adivinhar, concentra-se num conjunto de figuras que formam o grupo de intelectuais que comparecem no título. Um deles – muito possivelmente, o mais fascinante do conjunto – é o extraordinário Pedro Julião, também conhecido por Pedro Hispano, ou Papa João XXI, o único sumo-pontífice de nacionalidade portuguesa. Uma das rubricas dedicadas a esta intrigante personagem tem o engenhoso título de «Os Livros do Desassossego. (p.289) – e disso se trata, pois Pedro Hispano foi um homem à frente do seu tempo, capaz de incorporar o espírito medieval e uma decisiva pulsão individual e a um imenso espírito diligente e criativo. Armando Norte procede a um trabalho quase-detectivesco, com o objectivo – cumprido – de levar a cabo a «reconstituição do percurso de Pedro Hispano» (p.271). O eclesiástico filósofo, que ascendeu à mais alta dignidade da Igreja, apesar do seu pontificado tão breve, é uma das figuras que exemplificam a luz que iluminou (ao contrário da sabedoria popular) o longo período medievo – além de ser uma genial demonstração da unidade, por vezes frutuosa, como aqui, entre o poder do clero e a actividade intelectual.

Outra dessas personagens ilustres que formam o foco principal do historiador é Fernão Lopes, que partilha com João XXI a escassez de dados biográficos conhecidos acerca do autor. Por exemplo, a data do seu nascimento apenas pode ser «calculada de forma retroactiva a partir de factos inquestionáveis do seu percurso biográfico». Algo que, assim lembra o autor, é «habitual em relação à generalidade dos autores medievos, para o que há poucas excepções» (p.306). A conclusão desta galeria de notáveis figuras medievais – que passa ainda pelo estudo das personalidades de Santo António e do rei sábio D. Duarte, autor do notável Leal Conselheiro – culmina em Gil Vicente. Armando Norte devota um longo segmento de Os Intelectuais em Portugal na Idade Média ao estudo da vida e obra do grande dramaturgo, que surge na confluência do medievo e do Renascimento, ápice da Idade Moderna. Um estudo de enorme atenção, rigor e minúcia leva o historiador a percorrer a extensa obra vicentina, com nexos proveitosos para o ambiente cultural, histórico e social do Portugal de Quinhentos.
Os Intelectuais em Portugal na Idade Média é um livro importante, não só pela valia da sua realização, como pelo tema por si eleito. Não abundam os estudos dirigidos ao grande público e que se dediquem ao período medieval. Sobretudo, não é, de forma nenhuma, comum o enfoque em figuras cimeiras da cultura portuguesa neste período da História. Que a esses factores se alie a seriedade investigativa, a clareza na apresentação e a sobriedade directa do estilo – eis o que faz do livro de Armando Norte um título essencial.

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