Organizar listas com os melhores do ano é aborrecido.
Dito isto, quando estas revelam verdadeiras novidades, Arte que nos passou despercebida nas calhas do bulício desorganizado dos dias, ajudam-nos a começar melhor o novo ano.
Para nos ajudar e alargar perspectivas, convidamos mulheres que admiramos e cujo trabalho se destaca pela sua qualidade a mostrar-nos o que as surpreendeu no ano morto.
Eis as suas respostas inspiradoras.
No final, encontram os nossos destaques.
Obrigado às nossas convidadas pela disponibilidade e simpatia.
Obrigado a ti que nos lês.
Bom 2023.
Sejam felizes.
RAFAELA JACINTO
Escritora, activista
Cinema:
Tár de Todd Field
Suzanna Andler de Benoît Jacquot
Literatura:
A Pessoa e o Sagrado de Simone Weil (Editora Guerra & Paz)
Sol Invicto de Cobramor (Editora Traça)
Música:
Echo de Ruby Hughes & Huw Watkins
Coeur de Clara Luciani
Teatro:
Atlântida de Odete (Teatro Nacional D.Maria II)
Segundo Acto de Carlos J. Pessoa (Teatro da Garagem)
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ANA BRANDÃO
Actriz, cantora
Cinema:
Estrada Fora de Panah Panahi
Literatura:
As Malditas de Camila Sosa Villada (BCF Editores)
Música:
Air dos SAULT
Teatro:
Massa Mãe de Sara Inês Gigante (Centro Cultural Vila Flor)
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MIMI FRÕES
Cantora
Bokor apresentou-nos o single “Conta Poupança” no final deste ano e é já uma sensação de frescura que pretende implementar na música portuguesa.
“Lei da Recompensa” – Composto pela Teresinha Landeiro e Pedro Castro e interpretado pela mesma em colaboração com o Salvador Sobral. Para mim, são dois dos melhores cantores (em acrescento de serem excelentes músicos) que temos em Portugal. A junção dos dois permitiu uma faceta muito leve e ligeira de Salvador contrastante com a firmeza da Teresinha, embora sempre delicada com as melodias.
“DanSando” – É, para mim, o disco do ano. A Luísa Sobral fez um trabalho maravilhoso juntamente com a produção de Tó Brandileone. A Luísa como nunca a vimos mas com a classe e a excelência habituais. Maravilhoso.
“Peito Aberto” e, para mim, em especial, a “Paz Interior” de Tiago Nacarato ganha um lugar ainda mais especial quando ouvido ao vivo, forte recomendação!
“Língua Afiada” Dentro do Indie, este álbum dos Salto chegou com muita pinta na produção, linguagem e na música.
“can you see me?” – A parceria de Maro com Milton Nascimento na canção “juro que vi flores” é um orgulho de ver aliado à beleza da canção. Um disco diferente dos anteriores cuja produção executada por Maro e Blanda faz notar uma química muito grande no que toca à apreensão musical por parte de ambos.
“Primeira Parte de Um Assalto” – Valter Lobo surge sempre na melancolia sofrida. Este disco é abrigo da mesma e para os que padecem deste estado. Delicioso.
“Arco” – o disco incrível do guitarrista e cantautor Manuel Rocha. Um disco que mais parece uma viagem com letras altamente profundas e arranjos pormenorizados. Lindo.
“Triskle” de André Rosinha, “Embalo” de André Santos e “Crónicas” de João Pedro Coelho terão sido os álbuns de música instrumental a que mais regressei, muito embora a música instrumental portuguesa seja de uma enorme dimensão e não tenha colhido o máximo de informação possível.
Ainda na música instrumental, o trabalho de Surma na música e vídeo de “Islet” está num nível raramente visto em Portugal. Faz parte do disco “alla” lançado este ano.
No disco “Bells on Sand” do incrível pianista de Jazz, Gerald Clayton, Maro surge como participante em dois temas. Fá-lo no seu timbre maravilhoso e execução irrepreensível. É de notar prestígio desta colaboração.
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MARIA LEITE
Actriz
Fala-me sobre o cansaço como contingência para a produção de valor; disse o chão ao homem que nele se imprimiu.
(A fonte da imagem é o Daily Mirror e o seu autor Andy Commins.)
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RITA BLANCO
Actriz
Cinema:
Um Corpo Que Dança (Ballet Gulbenkian 1965-2005) – Marco Martins
Literatura:
O Nobel da Annie Ernaux.
Teatro:
Sagração Da Primavera (Teatro Praga – CCB)
A minha história não é igual à tua (Projecto corpoemcadeia da Companhia Olga Roriz, apresentado na Fundação Calouste Gulbenkian).
Corpoemcadeia é um projeto artístico de inclusão social que pretende levar a experiência da dança e do teatro a um grupo de reclusos, com idades compreendidas entre os 18 e 30 anos, em fase inicial do cumprimento da pena no Estabelecimento Prisional do Linhó.
https://gulbenkian.pt/projects/corpoemcadeia/
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A SUL
Cantautora
Cinema:
La citta delle donne – Fellini
Coraline – Henry Selick
The worst person in the world – Joachim Trier
Persona – Ingmar Bergman
A mulher do aviador – Éric Rohmer
Ran – Akira kurosawa
Good Bye Lenin – Wolfgang Becker
Música:
Mgmt – Dark Age
Caio – Travessia
Yebba – Dawn
Ganso – Não tarda
Meândrico Amar – Ar Moral anda te Fig Posters
Bob Dylan – The Freewheelin
Linda Perhacs – Paralelograms
Steve Lacy – Gemini Rights
Lucien Kimono – Lucien & The Kimono Orchestra
Supertrump – Breakfast In America
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CAROLINA AMARAL
Actriz
Cinema:
Tár de Todd Field
Xenákis Revolução: O Construtor de Sons de Stéphane Ghez
Retrospectiva Films from Iran for Iran (Another Screen)
Literatura:
Sontag Vida e Obra de Benjamin Moser (Objectiva)
Le nom sur le but de la langue de Pascal Quignard (Gallimard)
Revolutionary Letters de Diane di Prima
Música:
Mil Coisas Invisíveis de Tim Bernardes,
You Can’t Kill Me de 070 Shake
Rachmaninoff – Piano Works de Daniil Trifonov
Teatro:
The Divine Comedy de Florentina Holzinger no Kampnagel Festival,
Agora Que Demora de Christiane Jatahy no São Luiz Teatro Municipal
PAULO RIBEIRO DA SILVA
Editor Revista Intro
Num ano em que o cinema reinou por estes lados, afortunadamente com bons pretextos para voltar às salas escuras para o experimentar em todo o seu esplendor, foram bastantes os momentos de prazer proporcionados pela Cultura. Aqui ficam apenas alguns, sem qualquer ordem específica, por ausência de espaço e para não assustarmos os poucos leitores que aqui chegaram.
Cinema:
Aftersun de Charlotte Wells
Nunca mais ouvirão “Under Pressure” dos Queen com Bowie e “Tender” dos Blur da mesma forma depois de verem esta obra prima. O filme é a exumação da relação pai/filha, quando esta, já adulta, recorda umas férias de Verão com ambos, na Turquia, em finais dos anos 90, e tenta preencher os espaços vazios das gravações de vídeo desses dias. Obra de estreia de Charlotte Wells, consegue um equilíbrio dificílimo entre as analepses e as diferentes fontes do filme, com uma estrutura emocional sólida e coerente, sem manipulações ou truques e com uma atenção discreta à estética e à montagem, integrada com uma banda sonora que funciona como metrónomo para acção. Ecos de Claire Denis e Chantal Akerman são bem audíveis, principalmente La Chambre desta última e os planos das personagens por trás tão caros a Denis.
Tudo o que Paul Mescal faz tem sido consistentemente impecável e este filme apenas confirma a sua qualidade. A forma como gere o espaço e os silêncios, a sua fisicalidade ao serviço do argumento, as nuances da sua expressividade com ligação directa à alma da personagem. E à nossa. Se só puderem ver um filme de 2022 escolham este.
Tár de Todd Phillips
De acordo com a Indiewire, há uns dias nos prémios do New York Film Critics Circle, Scorcese disse isto sobre Tár:
“For so long now, so many of us see films that pretty much let us know where they’re going. I mean, they take us by the hand, and even if it’s disturbing at times, sort of comfort us along the way that it will be all OK by the end,” Scorsese said. “Now this is insidious, as one can get lulled into this, and ultimately get used to it. Leading those of us who’ve experienced cinema in the past — as much more than that— to become despairing of the future of the art form, especially for younger generations. But that’s on dark days. The clouds lifted when I experienced Todd’s film, ‘TÁR.’ What you’ve done, Todd, is that the very fabric of the movie you created doesn’t allow this. All the aspects of cinema and the film that you’ve used, attest to this. The shift in locations, for example, the shift in locations alone do what cinema does best, which is to reduce space and time to what they are, which is nothing.You make it so that we exist in her head. We experience only through her perception. The world is her. Time, chronology and space, become the music that she lives by. And we don’t know where the film’s going. We just follow the character on her strange, upsetting road to her even stranger final destination. Now, what you’ve done, Todd, it’s a real high-wire act, as all of this is conveyed through a masterful mise-en-scène, as controlled, precise, dangerous, precipitous angles, and edges geometrically kind of chiseled into a wonderful 2:3:5 aspect ratio of frame compositions. The limits of the frame itself, and the provocation of measured long takes all reflecting the brutal architecture of her soul — ‘TÁR’’s soul.”
Amen.
Juntem a isto tudo uma Cate Blanchett que nos faz acreditar que a protagonista do filme é real, tal a sua imersão completa na personagem, uma banda sonora quase subcutânea de Hildur Guðnadóttir e outros detalhes incríveis e têm um filme de que se lembrarão uns bons anos.
Chega ou querem mais?
Corsage de Marie Kreutzer – Uma reconstituição ficcional da vida da Imperatriz Isabel da Baviera, Imperatriz da Áustria (Sissi, lembram-se?, celebrizada pela deslumbrante Romy Scheneider), encarnada por Vicky Krieps, que juntamente com a realizadora e argumentista Marie Kreutzer e a banda sonora de Camille lhe traz uma actualidade bem vinda. Os planos habituais destes filmes de época, destacando a sumptuosidade dos cenários e das roupas, quase tornando invisíveis as pessoas que os habitavam, são substituídos por planos mais fechados, onde prevalece o vazio, o silêncio e o tédio opressivo que invade esses mesmos espaços no quotidiano, destacando a solidão e opressão em que a imperatriz vive encarcerada. Krieps por si só vale a ida ao cinema e é a única capaz de rivalizar com Blanchett pelo lugar de melhor actuação feminina do ano.
The Banshees Of Inisherin de Martin McDonagh
A premissa deste filme é básica: numa pequena aldeia de uma ilha nos confins da Irlanda em plena guerra civil, a amizade entre dois amigos de longa data (Colm, interpretado por Brendan Gleeson e Pádraic, interepretado por Colin Farrell) termina porque um deles decide que já não quer a companhia do outro, dispondo-se a levar essa vontade às últimas consequências. O elenco principal é completado por Kerry Condon, irmã de Pádraic e pelo versátil Barry Keoghan, que interpreta o tolo da vila. Todos são igualmente perfeitos, como uma família, mas a quimica entre Gleeson e Farrell, bem conhecida do inesquecível In Brugges (de 2008, também de McDonagh, que ansiava por tornar a juntá-los), é o motor desta tragi-comédia de tom bem teatral, a fazer lembrar o bom velho Shakespeare.
Martin McDonagh é o argumentista, realizador e produtor deste filme fluido e leve sobre o que nos une e separa, independentemente do género e das origens. Uma história simples, bem escrita e realizada com primor. Também tinham saudades?
Decision to Leave de Park Chan-wook
O sul-coreano Park Chan-wook, argumentista, realizador e produtor deste thriller, há muito que surpreende com a sua técnica e acuidade plástica e pictórica aplicada à arte cinemática. Basta verem a sua trilogia da vingança para perceberem porquê. Neste Decision to Leave a história de um detective metódico e organizado (Park Hae-il) que comete o erro de se apaixonar pela esposa (Tang Wei, uma interpretação de tirar o fôlego) de um homem cujas circunstâncias da morte é encarregue de investigar. A vida de ambos altera-se para sempre e cruza-se de forma irreversível, entre partidas e regressos. Uma história de amor nada habitual, temperada com violência, humor e puro cinema, capaz de nos fazer esquecer tudo o resto e seguir o caminho das personagens até aos créditos finais.
Um dos finais mais belos que verão em muito tempo. Inesquecível.
Everything Everywhere All At Once de Dan Kwan, Daniel Scheinert
Um daqueles filmes em que o aplauso no final é automático. Testemunhei-o eu numa sala de cinema a meio gás num dia de semana.
Entretenimento e humor com alma, entre a sucessão absurda de potenciais memes e cenas memoráveis, piadas secas e arriscadas numa indústria que praticamente as proíbe. Uma história de família, com muito fogo de artifício e multiversos. Uma experiência cinemática extraordinária com a actriz revelação desta temporada. Decorem o nome: Stephanie Hsu.
Bardo de Alejandro González Iñarritu
Um delírio fabuloso e megalómano do mexicano que nunca desilude. Aqui em registo auto-biográfico, usa todos os truques possíveis e imaginários para nos conduzir pela sua mente, entre passado, presente e futuro, numa homenagem sentida e ácida ao seu México natal, filmada como um sonho de que somos participantes involuntários, quase interpelados a intervir. Se quiserem aprofundar sentidos e significados, procurem a definição de bardo, ligado ao budismo e perceberão de onde provém a estrutura da história e a sua origem (é um limbo entre a morte e a reencarnação…). Se não estiverem para isso, o filme basta-se por si como um todo poderoso e impactante sobre a construção de uma vida, o choque entre a fama e o país/casa e amigos que ficam para trás, mas também sobre actos, consequências e algo sempre descurado nesta existência de certezas e verdades: o acaso, a outra explicação para tudo isto que chamamos vida.
The Fabelmans de Steven Spielberg
Apesar de a estrutura ser a habitual de história para todos, com o arco das personagens colocadas diante de uma crise, que superam no bom velho espírito pioneiro americano, desta vez o tema é a própria vida de Spielberg, nesta altura verdadeira lenda viva que realizou um filme a condizer, com a preciosa ajuda do sempre incrível Tony Kushner. O tema é a sua construção enquanto amante do cinema e seu artífice, com uma percepção precoce dos meios ao seu alcance para o concretizar e uma paixão infinita pela Arte que o moldou. Uma dedicatória à sua mãe e pai, criaturas opostas unidas pelo amor, que filma com reverência, sempre com câmara virada para cima, e com planos e cenas mais demoradas do que o habitual, uma mansidão que se pressente, como se Spielberg quisesse fazer o filme durar mais tempo. Já ganhou e irá ganhar o público, como todos os seus filmes e será certamente a consagração de um dos realizadores que mais nos fez sonhar nas últimas décadas. O elenco conta com Paul Dano e Michelle Williams, como seus pais, com desempenhos estelares, entre os melhores do ano, principalmente a Mitzi Fabelman de Michelle williams, cada vez mais vestindo a pele de uma actriz que parece ser de outra era, da era dourada de Hollywood, pela sua consistência e perfeição nas interpretações com que nos brinda. Já Gabriel LaBelle, que encarna Sammy Fabelman (alter-ego de Spielberg) não convence. Teima minha, ou alguém por aí viu o mesmo que eu?
Literatura:
Sontag Vida e Obra – Benjamin Moser (Objectiva)
Respondendo a um desafio do filho de Susan Sontag e com acesso total ao seu espólio, Moser constrói um monumento biográfico a um dos ícones culturais do século XX, sem se deixar enredar nos tiques da memorabilia ou da hagiografia previsível e condescendente deste tipo de literatura.
Fruto de sete anos de trabalho árduo, Sontag explora as contradições da sua persona pública e privada, explorando a mulher por detrás do mito urdido desde tenra idade por Sue Rosenblatt (nome original de Sontag) para se tornar “famosa”, como pretendia. A duplicidade aguda com que se ergueu e manteve no topo foi sempre a sua luta mais privada, aqui exposta: entre a Sontag social – brilhante a um nível intimidante e a Sontag íntima – insegura e auto-crítica, mas também atenta e de uma incisão certeira quanto aos seus poderes e fraquezas durante grande parte da sua vida.
A tese que Moser desenvolve ao longo das centenas de páginas e estende a todas as fases da sua carreira e biografia é de que escrevia sempre sobre o mesmo tema, enredando-o de forma mais ou menos óbvia em enquadramentos teóricos: a linguagem como “metáfora” da realidade e a forma como pode contribuir para descodificar o quotidiano. Ao mesmo tempo, focou-se também na estetização do Real pela Arte, tentado manter a autenticidade e fidelidade ao seu Eu de valores elevados como a Verdade e o Rigor. A dualidade entre corpo e mente foi prevalente na sua obra, espelhando a compartimentação que manteve toda a vida, materializada pelo segredo (que todos da sua esfera conheciam, mas só foi público no final da sua vida, numa entrevista histórica contada ao detalhe no livro) da sua bisexualidade, que sempre foi para si libertação (emocional, física, espiritual) e fardo (já que a sua assunção pública significaria a restrição da sua “aspiração à universalidade” [336]).
“Sue aos onze anos, tomou a «grande decisão» de ser popular: «compreendi a diferença entre o exterior e o interior»” (336) mas “ser conhecida como feminista e mais ainda como lésbica tê-la-ia empurrado para as margens” (337) como aconteceu com muitas das suas contemporâneas.
Tal como a sua mãe Mildred – personagem fascinante e muito influente na sua formação, habilmente explorada por Moser – Sontag tinha “De um lado, o eu vulnerável. Do outro, o artifício da personalidade, uma máscara concebida, conforme escreveu em 1959, para proteger aquela vulnerabilidade. «O meu desejo de escrever está associado à minha homossexualidade. Preciso da identidade como de uma arma para competir com a arma que a sociedade aponta contra mim». (161)
O desconforto de Sontag diante desta cisão e o seu custo emocional reflectem-se com detalhe e honestidade brutais nos diários que preservou toda a vida. Esperava (…) «que um dia alguém que eu amo leia os meus diários…+ se sinta ainda mais próximo de mim». Sempre acreditou (…) que teria um destino grandioso” (…) “Escondia-se em público revelando-se na intimidade, àquele leitor desconhecido.” (162)
O acesso irrestrito aos seus diários íntimos, concedido pelo filho David Rieff e as conversas com amigos e conhecidos contribuíram para elevar este livro acima das dezenas já escritos sobre a intelectual.
O meu livro favorito de 2022, sem rival, que me fez regressar ao território das biografias.
Exterminem todas as bestas de Sven Lindqvist (Caminho, 2022) – Crítica AQUI
The Book of Goose de Yuyan Li (FSG) – Uma história de amizade entre duas adolescentes (Agnès e Fabienne) contada em tom de reconstituição por Agnès, já após a morte precoce da amiga que lhe mudou a vida. Alguns paralelos inevitáveis com A Amiga Genial de Ferrante, mas com uma história bem diferente, ligada à criação literária e ao peso do passado, e uma escrita mais pejada de aforismos originais e inesperados, dotada da melancolia comovente e uma construção faseada das personagens, entre vazios deixados à imaginação e presságios. Um livro único.
As convidadas – Silvina Ocampo (Antígona)
Escritora extraordinária que nos surpreende a cada linha com a sua capacidade de misturar misticismo, lendas e crenças populares com o que de mais visceral tem o ser humano, normalmente escondido pelas normas sociais. Tudo é permitido nos seus livros e a agilidade com que constrói narrativas curtas e aliciantes, com personagens sólidas e inesquecíveis, estruturas narrativas imprevisíveis e desenlaces quando não surpreendentes, abertos e quase exibicionistas na sua audácia e qualidade é explosiva. Tudo o que encontrarem dela comprem, peçam emprestado, roubem.
Os Poemas de Paul Celan (Porto Editora)
Uma oportunidade única para uma perspectiva global da obra deste poeta ímpar. Tido como obscuro, era a si e aos seus fantasmas que ocultava na poesia que escrevia, os mortos e desaparecidos nos campos de concentração (os seus pais pereceram num deles, ele sobreviveu apenas para se matar, pesado com traumas e graves desequilíbrios emocionais), usando referências da Natureza e colhendo influências quer da música que amava, quer dos grandes da sua época e cultura, como Hölderlin, Rilke ou Bückner.
Segundo o posfácio, “pedia aos seus leitores, dizendo, quando faziam alguma pergunta: «Leia e torne a ler, a compreensão virá por si própria»”.
Como em toda a grande literatura, é este o desafio que nos faz avançar.
A Pediatra – Andréa del Fuego (Companhia das Letras, 2022) Crítica AQUI
Evangelhos Apócrifos – Frederico Lourenço (Quetzal)
Frederico Lourenço chama-lhe “volume supranumerário no projecto da Bíblia, em curso na Quetzal.”. Chamo-lhe complemento essencial para uma visão (ainda) mais holística dos textos bíblicos, traduzidos e apresentados em versão bilingue com a imparcialidade e rigor a que o eminente académico nos habituou. Apesar da disparidade de fontes referidas na introdução, este volume permite “vislumbrar o modo fascinante e diferenciado como as várias gerações de cristãos entenderam e veneraram a figura de Jesus. (…) as vozes alternativas e propostas múltiplas sobre como entender e enquadrar a mensagem de Jesus [que] se fizeram ouvir e foram seguidas por muitas comunidades cristãs.”
Mais um volume de uma obra extraordinária e aliciante que disseca o conjunto de textos essencial da cultura ocidental.
Viagem A Portugal – José Saramago (Porto Editora/Círculo De Leitores)
No ano do seu centenário, esta reedição revista e aumentada, com gravuras ilustrativas e mapas, é o livro que Saramago escreveu depois uma viagem de norte a sul do seu país em 1979. Um volume belo e celebratório da escrita do português universal e do país que amava.
Novas Cartas Portuguesas – Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta, Maria Velho da Costa (D. Quixote, 2022)
Reedição bela e oportuna de um dos clássicos incontornáveis da literatura portuguesa do século XX, que comemora os 50 anos que completou em 2021. Profusamente anotada e com a bibliografia bem. Com o bónus de contar com a organização e prefácio da saudosa Ana Luísa Amaral e da sua equipa, aqui encontramos textos a três mãos que mudaram a história e que valem por si, sem qualquer contexto.
Essencial em qualquer biblioteca.
A Sagração da Autenticidade de Gilles Lipovetsky (Edições 70)
Um dos filósofos mais proeminentes da actualidade, Lipovetsky debruça-se sobre o conceito actual de autenticidade, o seu poder e influência sobre aspectos tão diversos como “a relação dos indivíduos consigo mesmos, com a sexualidade e com a família, com o trabalho e com a arte, com a política e a religião.”
A evolução histórica do conceito, hoje normalizado e institucionalizado, mas antes sinónimo de contra-cultura e auto-determinação, é aqui dissecada em fases, todas elas aprofundadas por forma a procurar uma explicação para a actual “autenticidade normalizada (…), anti-heróica” em que o direito de ser autêntico substituiu o dever moral de ser autêntico. Lipovetsky procura devolver este valor da autenticidade à relatividade de outros tantos, desmistificando a sua aparente ascensão a valor inatacável, quase sagrado em detrimento de tantos outros.
Escrita esclarecedora e informada, que sobrevive à contingência e se projecta para o futuro, contextualizando e explanando sem doutrinação ou pedantismo. Algo raro e por isso recomendável para quem ainda privilegia o conhecimento.
O Acontecimento – Annie Ernaux (Livros do Brasil, 2022)
Ainda antes do Nobel já tinha lido este livro curto e foi com felicidade que assisti à consagração da escritora francesa. O acontecimento que titula a obra é um aborto que fez em 1964, altura em que a França ainda o proibia. Pior que isso, punia-o pesadamente nos tribunais e na sociedade, com a morte física de quem o fazia em locais esconsos e sem condições de higiene e a morte social, quando sobreviviam, proscritas pelos pares e mesmo pelo pessoal médico nos hospitais, como foi o caso de Ernaux. Para além da descrição dos factos, que Ernaux deixa no papel como os viveu, A escritora detalha os dilemas da criação do livro: porque falar tanto tempo depois de um evento tão traumático (o livro só foi publicado em 2000 pela Gallimard, mais de 35 anos depois dos factos), como tornar o relato relevante, como lidar com o trauma. “Há anos que giro à volta deste acontecimento da minha vida. Ler num romance a narrativa de um aborto mergulhou-me numa comoção sem imagens nem pensamentos, como se as palavras se transformassem instantaneamente numa sensação violenta. (…) Queria apenas verificar se teria prazer em escrever sobre isso. (…) Com esta narrativa é todo um tempo que é desencadeado e me conduz independentemente de mim.” (19). O registo diarístico, quase epistolar (como uma carta remetida ao futuro) e a linguagem natural e directa tornam o livro acessível, mas as atribulações criativas na sua concepção são detalhadas em simultâneo, como se ganhasse fôlego entre mergulhos na tragédia que a mudou para sempre.
Talvez por querer escrever o livro que gostava que existisse quando quis fazer um aborto, aqui está ele, relevante como há mais de duas décadas atrás. Contra o preconceito, a verdade, o testemunho. Contra o marasmo e a cumplicidade, o activismo.
A Academia Sueca finalmente acertou.
O filme bem recente e multipremiado que O Acontecimento teve por base vale bem a pena.
Suplentes, mas não menos importantes:
Mortal e Rosa de Francisco Umbral (Tinta-da-China, 2022)
O Diabo – Gonçalo M. Tavares (Bertrand, 2022)
Sair da Nossa impotência Política – Geoffroy de Lagasnerie (BCF Editores)
O Abismo Vertiginoso (Objectiva) / E Se O Tempo Não Existisse (Edições 70) – Carlo Rovelli
Noite De Reis Ou Como Lhe Queiram Chamar – William Shakespeare (Húmus)
Um Tiro No Escuro – Sandro William Junqueira (Relógio D´Água)
O Meu Ano De Repouso E Relaxamento – Ottessa Moshfegh (Relógio D´Água)
Canina – Andreia C. Faria (Tinta-da-China)
Cláudia R. Sampaio – Uma Mulher Aparentemente Viva
Entrevistas Corsárias Sobre A Politica E Sobre A Vida – Pier Paolo Pasolini – Vs Editor
Fantasmas Da Minha Vida – Mark Fisher – Vs Editor
Crepúsculo Em Itália – D. W. Lawrence – Tinta-Da-China
Música:
Kendrick Lamar – Mr Morale & The Big Steppers (PGLang/TDE/Aftermath/Interscope)
Kendrick Lamar, como o alter-ego Mr. Morale (todos os seus álbuns têm um, mas este tem honras de título), fala das suas dores e lutas, dos traumas e inseguranças pessoais e que afligem a sua comunidade, do choque entre o que é esperado de um ídolo e a realidade da sua imperfeição. Pleno de convidados, incluindo a sua família e o seu guru/terapeuta, Mr. Morale é íntimo e universal. Uma encenação trágica mas extremamente festiva da fragilidade humana e uma demonstração de poder, porque é de poder que aqui se trata quando um artista com tamanho alcance decide voltar a si e escavar fundo, para depois nos entregar em bandeja de ouro o resultado da expedição, em formato poético e pungente. Este álbum duplo com produção de luxo e composições que superam géneros musicais é um marco deste visionário que teima em quebrar estereótipos e inscrever-se na história da música.
Surma – Alla (Omnichord Records)
Uma ave rara na música nacional de 2022 e de qualquer ano. Música livre e poderosa, sem ser demasiada abstracta e indulgente. Projecta um combate, violento a espaços, com o eu artístico que a Surma criou para nos mostrar, mas também redenção, empatia e harmonia no caos. A música é de grande qualidade, desenganem-se. A produção impecável e toda a promoção e artwork irrepreensíveis. Quebraram-se tectos velhos e cheios de bafio aqui. O desejo é que a nova aragem fresca seja seguida por outros, que bem precisamos de combater a vaga no pop depressivo e saltitão, com cheirinho a plágio dos anos 90, que pulula pelas bandas portuguesas com direito a airplay. Parabéns à Débora e a todos os envolvidos no projecto. Vemo-nos nos palcos.
Mário Laginha – Jangada (Edition Records)
No ano do centenário de Saramago, o pianista hiperactivo Mário Laginha criou um álbum conceptual sobre o texto eterno de A Jangada de Pedra, com paisagens sonoras que o acompanham na perfeição. Se acham que não gostam de jazz, comecem por aqui. Se gostam, deleitem-se com esta maravilha.
Tyshawn Sorey – The Off-Off Broadway Guide To Synergism (Pi Recordings)/Mesmerism (edição Do Autor)
Um dos grandes génios do jazz e da música improvisada da actualidade. Compositor, professor, baterista versátil, Tyshawn Sorey lançou em 2022 dois álbuns dedicados aos standards (músicas do Great American Songbook, tocadas e gravadas há décadas em múltiplas versões por milhares de músicos de jazz e não só) que nos parecem bastante complementares.
Mesmerism é o álbum limpinho, com alguns saltos bem-vindos, que podemos com segurança colocar num jantar com amigos, embora seja tudo menos música ambiente. Cativa a nossa atenção e a repetição para ouvir os detalhes deliciosos permitidos, destacados por uma produção e execução centrada na execução sem voos rasantes ou picos. Jazz sólido e clássico, mas nunca resignado ou submisso, como seria expectável com este trio de sonho: Tyshawn na bateria, Aaron Diehl no piano (lider da banda da fantástica vocalista Cécile McLorin Salvant) e Matt Brewer no contrabaixo.
The Off-Off Broadway Guide To Synergism, com o selo da excelente e criteriosa editora norte america Pi Recordings, é um registo abrangente (3 CDS) gravado ao vivo no Village Vanguard, em que o trio convida o extraordinário saxofonista Greg Osby para incendiar standards. Osby torna-se com naturalidade o mestre de cerimónias, com faixas longas repletas de espaço para todos brilharem. Músicas que qualquer melómano já ouviu centenas de vezes pelas mãos destes quatro tornam-se estreias, entre solos e padrões que parecem surgir do nada, seguidos e subvertidos por cada um à vez ou em conjunto. Para sentar e contemplar, com um bom livro na mão. Uma revelação.
O álbum perfeito para aquele tio que ouve jazz há uns anos, mas se fica pela Blue Note dos anos áureos.
The Beths – Expert In A Dying Field
Neozelandeses que mais ouvimos este ano. Um álbum viciante, com rock bem rasgado conjugado com angústias adolescentes e a ironia millenial que tanto apreciamos. Passou debaixo do radar mas experimentem e digam coisas.
Wet Leg – Wet Leg
Pop Rock indulgente e divertido, bem tocado e perfeito para qualquer ocasião. Mortinho por ver como resulta ao vivo esta festa transformada em disco. Esta meninas são dinamite puro.
The Smile – A Light for Attracting Attention (XL Recordings)
Em repeat durante demasiado tempo em 2022. Os Radiohead (Yorke e Greenwood) com um baterista bem melhor chamado Mike Skinner. Todos os ingredientes que celebrizaram a banda britânica, incorporando a obsessão electrónica de Yorke, com a produção irrepreensível do amigo de longa data Nigel Godrich, com uma toada bem mais solta, mais próxima do jazz por vezes, mas sempre com os loops e emotividade que fizeram destes senhores família de tantos por esse Mundo.
Teatro:
Orgia – CCVF, 26/3/2022 – Crítica AQUI
Ils Nous Ont Oubliés – TNSJ, 9/7/2022 Critica AQUI