Como já é tradição por aqui, só divulgamos os melhores do ano após o seu término, com tempo para digerir e parar para pensar no que interessa do corropio de informação cultural que cessa finalmente, por uns dias. Não competimos para chegar primeiro. O tempo é um luxo de que disfrutamos e move-nos apenas o frémito da descoberta.
Pedimos ajuda a colaboradores e convidados para nos darem a sua visão de 2023, através dos seus favoritos. A lista é ecléctica e com boas surpresas. Bom ano e consumam cultura. Ela salva.
RAQUEL BULHA
CINEMA
O melhor
Dias Perfeitos – Wim Wenders a provocar-nos e a escarrapachar toda a simplicidade perdida
Close de Lukas Dhont (apesar de ser um filme de 2022 eu vi-o em 2023) – Fez de mim o que quis durante 1h e 45 minutos
O pior
Genocídio na Palestina
MÚSICA
O melhor
Peter Gabriel i/o
Yussef Dayes Black Classical Music
O pior
Genocídio na Palestina
LITERATURA
O Melhor
Como não li nada editado este ano, li muito a Annie Ernaux. Quem sabe se o próximo não será Jon Fosse
O pior
Genocídio na Palestina
TEATRO
O melhor
Sonho de Uma Noite de Verão de William Shakespeare (INFO AQUI)
Pela leveza e sentido de humor
Todas as Coisas Maravilhosas de Duncan McMillan (por Ivo Canelas) – Por todas as coisas
O Pior
Genocídio na Palestina
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ANA BESSA CARVALHO
CINEMA
Orlando, My Political Biography de Paul B. Preciado
MÚSICA
Concerto de Feist no Coliseu de Lisboa
PJ Harvey I Inside the Old Year Dying
Podem ler a reportagem do concerto em Paris AQUI
ANOHNI My Back was a Bridge for You to Cross
LITERATURA
Open Throat de Henry Hoke (Picador, 2023)
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FRANCISCO MOUTA RÚBIO
CINEMA
Mal Viver/Viver Mal, João Canijo
MÚSICA
Slow J Afrofado
LITERATURA
Depois da Lei, Luhuna de Carvalho (Língua Morta, 2022)
As Botas de Mussolini (Relógio D´Água, 2023) Gonçalo M Tavares
O Anibaleitor, Rui Zink (reedição da Porto Editora)
TEATRO
Última Memória, Sara Carinhas (Teatro São Luiz) (review AQUI)
Europa, Pedro Carraca (Teatro São Luiz)
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RAFAELA JACINTO
CINEMA
Queendom de Agniia Galdanova.
Festival de Cinema Queer Lisboa & Porto
MÚSICA
Bach: Piano Solo Maria João Pires
LITERATURA
Irmã Marginal de Audre Lorde (Orfeu Negro), tradução de Gisela Casimiro
TEATRO/PERFORMANCE/ARTE
Exposição Sade. Liberdade ou mal (Centro de Cultura Contemporânea de Barcelona)
Palestra/Performance Palavras Que Me Servem (Laura Falésia e André Tecedeiro)
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HUGO FILIPE LOPES aka COBRAMOR
Lista de coisas assinaláveis em 2023 (sem ordem porque não acredito nela ou hierarquia porque não a respeito):
CINEMA
– Old Oak de Ken Loach: não é o melhor filme dele mas faz-me lembrar o Noam Chosmky e o meu avô e poucos fazem cinema com consciência política de classe com esta classe. Quem coloca um personagem a dizer “blame the poor bastards below us” não precisa de efeitos especiais.
– Homem Aranha através do aranha verso: comecei por ser coagido pela minha filha a ver o primeiro Homem Aranha. Antes deste sair já estava desejoso de o ver. O melhor do Homem Aranha sempre foi não ser um milionário, mas apenas um desgraçado como nós que tem de fazer pela vida. Reinventado para a nova geração, Miles no lugar de Peter Parker, é um espelho do séc. XXI tanto para pais como para filhos. Com sentido de classe e estilo para dar e vender.
– Infinity Pool de Brandon Cronenberg: Brandon tem os enormes sapatos do pai (David) para preencher, mas eu tenho um fraco por filmes de terror, tendo crescido com uma dieta muita rica neste nutriente. Este, como todos, é um estudo da mente humana, com requintes de maldade, perversidade e muito masoquismo e carradas de desespero.
MÚSICA
– New Winds na Incrível Almadense: não sei o punk hardcore alguma vez teve a importância que eu sonhei que teve, e se teve, agora terá menos que nunca, mas os Velvet Underground começaram por influenciar dez pessoas que fizeram por sua vez dez das bandas mais influentes de sempre. Os New Winds talvez já sejam vintage, mas já na era pré-internet defenderam causas como as dos Chiapas ou da Palestina, entre outras com menos visibilidade do que deviam ter. Regressaram apenas esta vez para um concerto em benefício da União Zoófila.
– The Clocktower at the beach de William Basinski: gravado em 1979 e composto a partir de loops de fitas de gravações originais dos turnos da noite em fábricas e de televisões dos anos 1950, este disco é uma das primeiras gravações de Basinski e serve de janela para o que viria a ser o futuro. Qualquer disco deste cowboy da exploração musical é uma cavalgada solitária pelo interminável deserto do meio dia.
– Pharoah de Pharoah Sanders: algumas pessoas – raras – não precisam de palavras para transmitir ideias. A sua mera presença basta. Pharoah Sanders (falecido em 2022) era uma dessas pessoas e este disco, gravado em 1976 e reeditado e remasterizado agora, vem trazer justiça ao faraó, se bem que seja virtualmente impossível superar a sua colaboração com os Floating Points.
– When the poems do what they do de Aja Monet: só o dizer o nome do disco é uma doce provocação. Escreve e toca como se os Last Poets e os Black Panthers tivessem sido ontem e pudessem ser amanhã.
– Purge de Godflesh: quando Justin edita, eu oiço. Quer seja no formato Jesu ou no formato Godflesh. Purge é uma espécie de híbrido entre os dois projectos, sem perder a abordagem minimalista e indutora de trance, implacável e inexorável – You Are the Judge the Jury and the Executioner
– Punk em 2023: pensei numa série de discos a incluir (Gel; Fucked Up; Poison Ruin; Paranoid; Physique; Upchuck; Civic; etc) e tive várias conversas sobre o assunto.Acabei por decidir não escolher nenhum em particular por um motivo: as hipóteses desobrevivência destes discos são escassas e eu preciso de ser arrebatado para serconquistado. Não sei qual o papel que o punk tem a desempenhar neste século, mas não me contento com menos que uns Clash, uns Crass, uns Black Flag ou até uns Refused.
– Dogsbody de Model/Actriz: só o nome da banda parte-me todo. Gritar desesperado sobre uma muralha de distorção dançável “não tens que te submeter” com voz lânguida e desafectada, faz de mim um rapaz tão feliz quanto possível a ouvir coisas destas.
– Death Beats de Necro: música para fazer robots cortarem os pulsos enquanto abanam as ancas, o pós pós punk milenarista a sobreviver ao pessimismo com batidas frias como gelo à meia noite no Pólo norte, tudo tingido a vermelho sangue.
– Nick Cave a tocar Rainy Night in Soho no funeral de Shane McGowan “Don´t cry my baby as they lead me where no love can help me.”
LITERATURA
– Anarquismo ou a arte de governar de Diogo Duarte (Outro Modo): um estudo académico mas não demasiado académico sobre o anarquismo durante a primeira república portuguesa e como antes dos brandos costumes, não se papava grupos facilmente.
– Primeiros Trabalhos: 1970-1979 de Patti Smith (Traça): confesso desde já o interesse que tenho investido na obra, tendo sido tradutor e editor, mas os primeiros dez anos de escrita de Patti Smith, de onde brotou Gloria entre outros registos, têm de ser dignos de nota para alguém.
– Hotel Beat de vários autores (Edições Fantasma): saiu no mesmo ano que a antologia beat de Adolfo Luxúria Canibal, mas esta prima por ser uma visão muito transversal e incluir um português, assim como outras mulheres além de Diane Di Prima.
– Bestiário Menor de Eduarda Neves (Barco Bêbado): deste lado da morte de Debord, tem havido muitas tentativas de usurpação e poucas de continuação. Eduarda Neves continua a dissecar o cadáver da arte que a maioria dos artistas e público insiste em consumir enquanto se manifesta contra a necrofilia.
– Promises of Gold de José Olivarez (Henry Holt): ser descendente de emigrantes mexicanos da América de Trump é, por si só, uma epopeia e Olivarez completa o ramalhete ao escrever uma obra poética onde se reflecte o seu desenraizamento, atirando para a misturadora a sua auto assumida condição de gordo e feio.
– Um feminismo decolonial de François Vergès (Orfeu Negro): não o digo com tanta frequência como penso, mas um feminismo divorciado de causas como a luta de classes, a consciência negra e o movimento LGBT, é auto sabotador. François explica-o muito melhor do que eu, tornando este livro seminal para qualquer ser humano, sobretudo para aqueles que acham que não precisam de o ler.
– Contra a palavra escrita de Ian Svenonius (ChiliComCarne/Thisco) – Svenonious foi membro dos Nation of Ulysses, que, para quem não conhece, tiveram como disco de estreia 13 point program to destroy America. Décadas volvidas, a vontade de Ian não mudou muito, e entre a música, os livros e a arte, “Contra a palavra escrita” é um exercício de estilo em todas as acepções da palavra que ao demolir o poder da palavra, lhe concede espaço para a edificação.
PROTESTOS
– A cultura. O nosso problema cultural é de base e não se resolve com subsídios ou afluência de público. É uma questão educacional em que as crianças e os jovens são formados para ser robots obedientes nas corporações onde terão que cumprir pena, sob pena de não sobreviver. Neste cenário, a cultura perderá sempre para o entretimento, o que não significa que algo não possa ser ambos, em determinadas instâncias. Mas cultura e capitalismo nunca terão uma relação saudável, enquanto o primeiro se vergar ao segundo.
– É inaceitável o que está a acontecer na Palestina, mas é bom ver tantas pessoas a dar o corpo para dar voz a quem a não tem.
– A negação é um poder espantoso. Em pleno milénio continuamos a alimentar a fantasia que substituir combustíveis fósseis por outros dependentes da mineração e da emissão de dióxido de carbono em larga escala, é uma solução viável, não para salvar o planeta, mas a humanidade, porque no fundo é isso que nos parece mover.
– Os protestos dos universitários: estaremos assim tão satisfeitos com o que tem sido feito pelo clima ao ponto de desprezar o que a juventude faz como inútil ou ridículo? Tragam-me 50 universitários em protesto em vez de uma cimeira internacional do clima para onde todos viajam de jacto privado, entre outras coisas igualmente risíveis.
– A Igreja continua a sair impune. Depois do grande escândalo de pedofilia que se dizia não existir em Portugal, nem penitência nem sequer audiência no tribunal. O estado é laico quando lhe convém, quando não convém faz ouvidos de mercador.
– 48 anos de ditadura não foram suficientes. Quase nos 50 anos do 25 de Abril, e há quem continue a achar que as noções de Salazar travestidas por um partido com bom branding, são uma boa ideia.
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PAULO RIBEIRO DA SILVA (EDITOR)
CINEMA/SÉRIES
Succession Temporada 4 (HBO)/The Bear Temporada 2 (Disney +)
Coloco-os juntos porque, apesar da urticária que os consensos me provocam, são referências inevitáveis para qualquer pessoa no Planeta Terra, pelo menos na parte ocidental. Razões: a consistência, qualidade e profundidade da escrita, o poder e influência das interpretações, a capacidade de evoluírem em crescendo, escapando à maldição de estar à altura da temporada de estreia, juntando novos elementos ao elenco e fazendo escolhas no desenvolvimento da história que forçam espectadores e todos os envolvidos a manterem-se na máxima tensão para que tudo corra sobre rodas.
Sobre Succession quase tudo foi dito, por isso evitemos clichés reverenciais e as ligações óbvias aos clássicos greco-romanos e shakespearianos, porque escaparão a quem não conheça ou simplesmente não queira saber. O fascínio desde o piloto vem da capacidade de criar empatia com pessoas execráveis, emulando o exercício árduo (e extremamente divertido e desafiante) dos actores envolvidos (até ver, sem mácula pessoal ou espiritual sequer comparável). A não ser talvez o esquivo, misterioso e absurdamente talentoso Jeremy Strong, claro candidato a potencial serial killer. Ninguém me convence que tudo aquilo que faz é “method acting”. Piadas à parte, a magia está na mistura entre um guião bem “tight” (como eles dizem) e a liberdade dada aos actores para juntarem as suas achegas ao mesmo, conferindo um ritmo diabólico aos diálogos, possibilitado pela existência de múltiplas câmaras em cada cena e pelo trabalho escrupuloso e detalhado de câmara, produção e pós-produção, paraíso para a montagem de onde surge a magia que nos chega via streaming.
The Bear, que estreou a sua segunda temporada em 2023, segue o mesmo princípio mas em versão minimalista, desta feita baseado nas experiências pessoais do criador e realizador de grande parte dos episódios: Christopher Storer. Depois temos produtores como Hiro Murai, responsável pelo sucesso da série Barry e também de Atlanta, e já agora da carreira do já por si genial Donald Glover no seu alter-ego Childish Gambino (com quem fez isto). Carmine Berzatto (Carmy, interpretado pelo talentoso Jeremy Allen White, finalmente com o crédito que teimava em escapar-lhe), o filho pródigo, a casa torna, depois de conquistar o Mundo da culinária a expensas da vida pessoal e familiar, que simplesmente se eclipsa. Regressa para tentar recuperar o decadente negócio familiar de restauração, após a morte trágica do irmão mais velho, com a ambição de o transformar num restaurante digno de estrelas Michelin. Uma utopia que esbarra na brutal e divertida (sim também temos boa comédia por aqui, apesar de ser um esticão estar nomeada para Melhor Comédia/Musical) dinâmica familiar, plena de silêncios e verdades berradas aos quatro ventos, doa a quem doer. Mas também da massa invisível que transforma em família todos os que gravitam em torno daquele restaurante, incluindo o desprevenido espectador. Depois temos o sexto episódio, “Fishes” de seu nome, em que recuamos uns anos até ao verdadeiro aquário em que se transforma a casa dos Berzattos na véspera de Natal. Se só tiverem uma hora para ver o que melhor se fez em 2023 na TV, é por aqui. A lista de convidados é um corropio de estrelas das últimas décadas da televisão e cinema americanos, com uma inacreditável Jamie Lee Curtis ao leme, sem bússola claro. A disfunção familiar em todo o seu esplendor festivo, com direito a carros desgovernados e furos na na armadura mesmo dos espectadores mais empedernidos. Uma daquelas horas que nos devolve a esperança no regresso da época dourada da TV de Sopranos e Six Feet Under. Façamos figas, todos juntos.
Stonehouse (Filmin)
Matthew Macfadyen (o senhor Wambsgans de Succession) em grande nesta mini série baseada num caso real de um político inglês com aspirações a altos voos que, em plena Guerra Fria, é convencido pelo KGB a dar uma ajudinha à Mãe Rússia, apesar da sua apetência para a espionagem ser nula. Uma entre muitas séries que a Filmin tem ao dispor no seu catálogo, prontas a descobrir.
Oppenheimer de Christopher Nolan
Sim, sou da equipa do homem da bomba atómica. Barbie tem o condão de quase nos fazer esquecer que a sua protagonista é uma boneca de plástico, que se pode tornar em tudo o que a sua dona ou dono ou done quiser fazer dela, com a escrita original da minha querida Greta Gerwig e do seu mais que tudo Noah Baumbach. Mas quando começa a ser panfleto, perde a graça, mesmo sustentada pela maior estrela feminina destes anos, de seu nome Margot Robbie. A subtileza e inteligência que esta dupla sempre demonstrou ao longo da sua carreira seria aqui um acrescento valioso, mas só assoma a espaços. O hype é incrível, é fundamentado na fabulosa produção e promoção, mas também no que fica subentendido naquele belo final, finalmente aberto ao espectador, mas Nolan leva-nos num percurso bem menos cor de rosa e promocional, quer de valores quer de produtos, embora não isento de falhas, como por exemplo a ausência das vítimas inocentes nos muitos frames da super-produção, com a excepção de uns segundos no discurso de Oppenheimer pós-tragédia.
Para além de Nolan, e do sempre complexo e brilhante Cillian Murphy, os destaques naturais vão para Ludwig Göransson e Hoyte van Hoytema, responsáveis pela banda sonora e cinematografia (bem diferente da mera fotografia) respectivamente. Da composição na base de toda a banda sonora – “Can You Hear The Music” – falamos adiante. A banda sonora, híbrido de grande ensemble com peças mais intimistas, foi gravada nuns inacreditáveis cinco dias e é o fio condutor de todo o filme, partindo da flexibilidade do violino (por não ter trastes) para melhor se adaptar a cada uma das três partes do filme e às flutuações de humor do seu protagonista, com um resultado estarrecedor. Quanto a Hoytama, o elemento remanescente da tríade invisível que criou este monstro visual e emocional que vale uma ida ao cinema para o ver na versão original (IMAX 65mm), teve o desafio de uma vida ao utilizar as câmaras monstruosas para planos fechados sobre faces, demasiado próximo dos actores, assim como para as sequências mais rápidas e todo a terceira parte do filme com o “inquérito” a Oppenheimer, anos depois de Hiroshima e Nagasaki. Pelo resultado, conseguido em conjunto com a equipa de efeitos especiais, liderada por Scott R. Fisher (outro desafiado por um realizador que só utiliza CGI, o chamado “ecrã verde” em situações extremas, optando por soluções práticas como reproduzir as explosões atómicas no atol de Los Alamos através de miniaturas e reacções químicas básicas), é impecável, criando uma experiência sensorial difícil de igualar nos próximos anos.
Depois temos o elenco. Florence Pugh numa actuação de notável vulnerabilidade e entrega, revelando a cada filme novas nuances do seu talento infindo, Robert Downey Jr., finalmente livre do peso do ferro, possuído pela inveja e desdém do arqui-inimigo de Oppenheimer, um certo Lewis Strauss que a história tratou de devolver ao seu lugar no livro dos derrotados e Emily Blunt como Kitty Oppenheimer, a consciência crítica que sempre procurou devolver o grande génio à realidade que lhe escapava, lembrando-o do jogo político que teimava em perder e acabou por lhe trazer grandes dissabores. Cillian Murphy dispensa apresentações e é a chave deste novo enigma de Nolan. Com a gigante câmara IMAX constantemente a metros de si, atenta como nunca a todos os detalhes, apresenta-se estóico e frio, como Oppenheimer sempre se deixou ver, figura de Giacometti atirada para o circo de feras da política de guerra que mudou o equilíbrio de forças mundial, com o defeito de ter desenvolvido uma tardia consciência de si e do Mundo em ruínas, que não se coadunava com o clima maniqueísta do pós-II Guerra Mundial.
Um triunfo em todas as frentes. Um filme para a História do Cinema.
Anatomie d´une Chute de Justine Triet
Um dos filmes do ano é francês e conta com uma das melhores actrizes da sua geração, com pelo menos um filme inesquecível por ano nos últimos anos. Chama-se Sandra Hüller e filme que a tenha no elenco tem selo de qualidade (se têm dúvidas, confirmem no arrepiante The Zone of Interest do visionário Jonathan Glazer, mais um prodígio dos videoclips que em boa hora se virou para o cinema). Cannes premiou este drama com a Palma de Ouro e muito desse mérito fica com Justine Triet, realizadora e principal argumentista, que foca o desenvolvimento do argumento na sua parte jurídica do filme, em que a protagonista Sandra Voyter, escritora estabelecida, vê a sua vida privada exposta e dissecada, com enfoque na dinâmica com o companheiro falecido de cuja morte é a principal suspeita. Anatomia de um casal em queda, sem truques ou manipulações baratas e com uma das cenas mais brutais e inesquecíveis do ano em que o momento chave nem sequer é visível. Merece todos os prémios que possa receber e ainda agora começaram a chegar.
The Holdovers de Alexandre Payne
Paul Giamatti brilha neste filme simples sobre um Natal passado a três num colégio interno. O cenário é a Academia Barton, clássico estabelecimento de ensino conservador a que já nos habituamos nos filmes americanos, situado na histórica New England (berço da nação e cenário dos eventos principais do puritanismo americano). No início da década de todas as mudanças nos EUA (1970), o rigor formal começa a ceder: os cabelos dos alunos são compridos, os uniformes e as ideias desalinhados. Mas há quem resista. Giamatti é Paul Hunham, professor de estudos clássicos do colégio interno, que recusa facilitismos independentemente do poder dos pais dos alunos e paga caro por isso, com o desdém de pares e alunos. Angus Tully (Dominic Sessa), estudante conhecido pela sua rebeldia, é forçado a ficar retido no colégio durante toda a interrupção lectiva natalícia, acompanhado pelo chaperone Hunham e pela cozinheira Mary Lamb (Da’Vine Joy Randolph, candidata ao Oscar como actriz secundária, com um desempenho memorável, no seu luto pelo filho promissor perdido no Vietnam). Payne não complica e foca a câmara nos detalhes interpretativos, o que, com um elenco destes, é o único caminho para um filme bem sucedido. Uma das surpresas do ano. Uma excelente entrevista a Paul Giamatti conduzida por Marc Maron AQUI
Beau is Afraid de Ari Aster
Aster e Phoenix finalmente juntos. O pretexto são três horas de brutal estranheza, entre delírios, violência física e psicológica, para contar a história de uma doentia relação de co-dependência entre mãe e filho. O complexo de Electra transformado em algo similar a um pesadelo alegórico de culpa, arrependimento e masoquismo. Ou então uma má trip de um ser perturbado que teve que mudar a medicação que utilizava para controlar a paranóia. O resultado é inqualificável e mais ninguém para além de Joaquin Phoenix estaria à altura de representar este martirizado Beau. Vejam e mergulhem de cabeça. Esqueçam as explicações.
Great Yarmouth: Provisional Figures de Marco Martins
O melhor filme deste realizador que insiste em gritar presente, seja em palco, museus ou ecrãs gigantes. Sempre bem acompanhado e com espaço e tempo para dar largas à criatividade, Marco Martins lançou-se neste projecto ainda antes da pandemia, para depois ter que o interromper a meio das filmagens em pleno lockdown na Grã Bretanha, regressando a bordo de um dos derradeiros aviões para Portugal.
Como muitos dos filmes que este ano tiveram em si os holofotes da fama e da crítica de especialistas e público, a protagonista – Tânia, interpretada pela camaleónica e sempre abismal Beatriz Batarda – é uma barata. Sobrevive a tudo, como a própria Batarda diz, com quase nada de físico ou emocional. A única muleta que a sustenta é o sonho de escapar do vórtice em que vive – como handler de mão de obra precária, vinda de Portugal com promessas de casa e ordenado estável, para se depararem com uma escravatura moderna em matadouros de aves, onde são preparadas para a comercialização e consumo – e com o dinheiro que ganha mobilar hotéis e prepará-los para receber turismo de terceira idade. Presa pela fidelidade que julga ter aos seus conterrâneos, mas consciente de que os prende e os coloca em perigo ao retirar-lhes o passaporte, vive nesta farsa de simpatia, sujeita à violência do companheiro somada à degradação de uma vida sem luz, que Marco Martins reflecte, sem concessões, nas filmagens e nos cenários em que a enquadra, com a ajuda da excelente cinematografia de João Ribeiro.
Batarda escolhe, como sempre faz e como poucos vi conseguir (muitos humilharam-se a tentar), dissolver-se para dar lugar à sua criatura, que surge das suas cinzas, renascida. A voz, a pronúncia inglesa distorcida, a postura corporal, a expressividade facial, os pequenos detalhes de adereços e caracterização: tudo concorre para esta nova Tânia ser não só credível como empática para o público, tentado a tomar as suas dores apesar das monstruosidades que testemunha, como se a ambos (personagem e os seus espectadores) não restasse escolha.
Depois temos surpresas. Romeu Runa, para quem não está atento, é uma pérola em bruto. Aqui o seu Raúl junta à já reconhecida plasticidade e expressividade física que são seu apanágio, uma amplitude interpretativa ainda oculta e que urge explorar. O sofrimento contido e coragem da sujeição à humilhação por um bem maior – a sua amizade e fidelidade cega a Tânia – são trágicos e comoventes, uma prova inegável de superação não só da personagem mas do seu criador. Rita Cabaço como Sandra, outra sobrevivente, escolhe o caminho fácil para a felicidade e com isso um papel memorável surge naturalmente, como tão bem faz em palco e no ecrã.
No final temos um ser místico, chamado Bob, a fazer o prólogo. Interpretado por Robert Elliot, é o veículo para uma voz infinda que atravessa séculos e geografias para nos avisar que, a vida como a conhecemos, numa supremacia balofa e irrealista sobre a Natureza, não é sustentável e tem os dias contados. O subtexto ecológico presente para quem o quiser escutar, mas também a beleza que sempre sobrevive entre o caos e o desastre da existência.
Um filme difícil de rever, inesquecível.
Uma das melhores entrevistas ao realizador que ouvi, em que fala do filme e do seu processo criativo foi feita pelo Rui Pêgo e está AQUI
Uma boa entrevista com Beatriz Batarda na RTP sobre o filme AQUI
MÚSICA
The Other One de Henry Threadgill (Pi Recordings)
A maravilha de ouvir free jazz intercalado com composição soar melhor que tanta música de airplay.
Desafiante e compensador a cada minuto, inspirador nos caminhos que ousa trilhar, o quase octagenário Threadgill recusa parar e viver dos louros da vanguarda que sempre soube habitar e avança, intrépido, para o futuro, desbravando sonoridades novas, quer no seu sax, quer no formato de ensemble de doze músicos, entre cordas, sopros, piano e percussão. Em três movimentos, o conjunto ecléctico e de várias idades homenageia o falecido Milford Graves, cujo derradeiro trabalho se focava na aplicação do ritmo cardíaco à música. Levando o pressuposto à letra, o trio de cordas improvisa sobre uma gravação dos seus batimentos cardíacos para criar o segundo movimento deste disco. A ouvir, com espírito aberto.
Continuing de Tyshawn Sorey Trio (Pi Recordings)
Sorey e seus amigos Aaron Diehl e Matt Brewer, respectivamente no piano e contrabaixo, diverte-se a reinterpretar clássicos do jazz, demonstrando novamente a sua mestria com a subtileza que só os grandes possuem, aquele poder de saber onde estar e onde desaparecer, para deixar apenas um rasto de ritmo como base para a música espernear à vontade. Diz-me com quem tocas, dir-te-ei o que vales, parece dizer-nos nestes últimos discos, despindo a pele de vanguardista e mestre da composição multi-premiado, para regressar às bases de qualquer músico com o improviso por cartão de visita. O trio surpreende com as dinâmicas seguras que assume para clássicos, como se sempre tivessem existido na mente dos seus criadores originais, como Ahmad Jamal e Wayne Shorter por exemplo, e abdica conscientemente dos solos rápidos e brutais de que são capazes, para “criar um ambiente em que a música possa realmente respirar e focar[mo-nos] mais na forma como interagimos, com espaço para nos sentarmos por um momento”, como diz Sorey. Uma sessão que seria de dez temas passou a ter apenas quatro, explorados nas suas possibilidades mais recônditas e instintivas, geralmente num take único. Um daqueles álbuns a que podemos regressar sem moderação, com a garantia de algo novo a cada audição.
Cécile McLorin Salvant na Casa da Música (crítica AQUI)
O hype totalmente confirmado.
Ao vivo muito melhor que em disco.
“Can You Hear the Music” de Ludwig Göransson (Oppenheimer BSO)
Para a cena em que Niels Bohr (Kenneth Branagh) pergunta a Oppenheimer se ele consegue “ouvir a música”, Göransson criou uma melodia de dois minutos com 21 mudanças de ritmo. “Pensamos que teríamos de a fazer trechos e gravá-la compasso a compasso. (…) Mas a Serena disse ´Eles são óptimos músicos, porque não tentarmos diferentes técnicas de gravação e tentar fazer um take único?´ Então percebemos como o fazer, e é por isso que ouves essa energia louca que causa aquele ímpeto” (Fonte: Variety)
Owl Song de Ambrose Akinmusire (Blue Note)
Ambrose “goes european”, com convidados de luxo. Toadas tranquilas, com longas frases monossilábicas e solos de classe estelar como pano de fundo. A Blue Note com um dos tr(i)unfos tardios do ano.
Laginha e Burmester ao vivo no Centro Cultural Vila Flor
Dois amigos de longa data juntos para uma digressão de recitais a dois pianos, um clássico e o outro mais ligado ao jazz. Mário Laginha e Pedro Burmester trouxeram consigo o amigo Bernardo Sassetti a Guimarães, para o lembrar e homenagear da melhor forma que um músico profundo e original deve sê-lo: tocando de modo irrepreensível as suas composições.
Foi surpreendente ver Burmester, habitualmente imbuído da frieza técnica dos pianistas clássicos, arrebatado, quase em fúria, elevar o clássico “Noite” (base melódica da BSO do filme Alice). Mais do que uma interpretação, tornou-se elogio e elegia sentida por todos, em sintonia muda. A única música do recital em que a habitual ânsia das palminhas tépidas, ainda antes de o pé deixar o pedal do piano, se refreou e, por segundos mágicos, que pareceram intermináveis, o acorde final se manteve a planar e pôde ecoar livre, até se desvanecer. O momento ao vivo mais feliz do meu ano.
Com um alinhamento predominantemente clássico, que passou por Ravel, Piazzolla; Debussy e Chopin, Laginha acabou um pouco limitado, recebendo finalmente carta branca para soltar os dedos em “Reflexos”, do seminal Nocturno (Clean Feed, 2002) de Sassetti, tocada a quatro mãos, e na sua versão jazz da Balada nº 1 em Sol menor de Chopin.
O resto do concerto foi uma soirée entre músicos de primeira com convidados que lotaram a sala do CCVF para os ouvir. O alinhamento terminou com o “Bolero” de Ravel a quatro mãos, seguido de três encores. Com o entendimento telepático habitual, os clássicos soavam a originais e a irreverência nas interpretações temperava o peso do cânone. A redescoberta partilhada e a generosidade mútua transpareciam a cada compasso e a noite passou a correr, sem momentos mortos.
“Velhos” do álbum Contornos da Mimi Frões
Involuntário certamente é o acerto do nome do álbum, já que, a cada música, fica mais nítido o perfil de uma cantautora segura, com uma identidade marcada e uma voz distinta, fresca e clara na dicção, sem os tiques e truques habituais. As palavras são suas e isso faz toda a diferença, porque com a interpretação as faz sobressair sobre os arranjos perto do muzak que as envolvem. Faz lembrar a Luísa Sobral a espaços (com quem colabora em “Águas Passadas”), mas com uma voz bem mais rica e uma escrita mais forte. “Velhos” é a faixa em que escolhe regressar à base de uma boa canção, algo como o teste do algodão para um tema: reduzi-lo a voz e guitarra. A companhia de um dos melhores guitarristas da nossa praça – Afonso Pais – é sempre um bom começo e as suas harmonizações em tons menores resgatam a melodia da sua toada mais fatalista/fadista (depois recuperada no epílogo do disco, com a voz poderosa de Ricardo Ribeiro) para lhe emprestar a universalidade e os arrepios bons diante da fórmula certa.
Este é só o começo de uma bela carreira (embora não seja o seu disco de estreia). Não é o álbum perfeito, mas é um álbum para memória futura.
LITERATURA
Falhar Melhor de James Knowlson (Húmus, Teatro Nacional São João)
O livro do ano, sem dúvida. Um trabalho gigante e rigoroso de tradução e edição e um volume essencial para compreender não só a história de um dos dramaturgos e escritores essenciais do séc. XX mas também a vida daqueles que o rodearam (como James Joyce, por exemplo, com quem privou e cuja filha quase desposou) e da Europa que percorreu até se estabelecer em Paris nas derradeira décadas da sua vida.
Escrito por alguém que conhecia Beckett e a quem foi concedido amplo acesso à sua vida, por via de amigos, conhecidos e escritos vários, tal facto reflecte-se na qualidade da escrita desde a primeira página, com a especulação e hagiologia associada a este tipo de literatura substituídas por factos fundamentados e documentados, e toda a informação extra utilizada para construir ligações ligações perspicazes e profundas com o seu trabalho e inspirações.
Como em todas as vidas, encontramos aqui as histórias dos sucessos mas também os fracassos do irlandês mais famoso do Mundo, como a sua primeira peça, hoje inédita por exigência do próprio, por a considerar menor, à época (1947, em pleno período de criatividade fértil de Beckett) rejeitada pelas companhias teatrais e produtores/mecenas contemporâneos. Conhecemos facetas privadas e as fases de mudança fundamentais à construção do mito hoje reverenciado por tantos, na percepção pública mas mais do que isso, no trabalho que produzia, como o que lia em determinada época ou a arte e música que o impressionava.
Um testamento biográfico completo e definitivo do singular Samuel Barclay Beckett, finalmente em português, 25 anos depois da sua primeira edição.
Atenção a esta colecção Empilhadora, com o selo de qualidade do Teatro São João. Verdadeiro serviço público, com bom gosto na selecção das obras e traduções estelares. Mais dois volumes prometidos para 2024.
Maternidade de Sheila Heti (Relógio D´Água)
Comecemos pelo final: Sheila Heti escreveu este livro de um “lugar de luta” e essa tensão atravessa-o. O inimigo: a maternidade. Esperada por todos e que despreza e sente como eterna culpa. Essa luta é travada em várias frentes. A mais dolorosa é a íntima, explorada ao máximo (à exaustão por vezes) em passagens marcantes. A relação com a mãe, a avó e a bisavó, as três gerações anteriores, é escalpelizada: as oportunidades desperdiçadas, as angústias partilhadas passadas nos genes, a luta contra a opressão das expectativas comunitárias, morais e familiares, fardos eternamente mutáveis mas sempre presentes. Há um mergulho sem escafandro na dor, duro de ler, em que abraça a desorientação e as emoções que deixa no papel, sem filtro.
“Esta manhã tive medo de estar grávida. Senti-o tão intensamente. Mas eu não quero estar grávida! Durante a caminhada de regresso a casa, vinda da farmácia (…) tomei a pílula do dia seguinte./Uma medida de impaciência, uma má sensação durante a caminhada (…) a inteiramente desigual distribuição do amor, a sensação de que alguém depende de ti, a sensação de que se está a falhar. A sensação de que resta pouco na vida por que valha a pena lutar, tendo sido algo conquistado, resta pouca coisa a fazer. Uma sensação de inutilidade, de o fim do mundo estar a chegar, de a vida dos outros não ter sentido, de cada um estar a fazer o que lhe apetece, de não haver sentido colectivo no qual todos participemos.(…) o facto de para uma mulher curiosa, nenhuma decisão parecer nunca a decisão certa. Falta demasiado em ambas./Que posso dizer, excepto: perdoo-me a mim mesma por cada vez que deixei de arriscar (…) Eu percebo que o medo atrai uma pessoa tanto quanto a possibilidade, e com mais força ainda. (…) Mas a ideia de ter filhos sempre me fez sentir vertigens, ou eufórica, como se tivesse respirado hélio, como todas as coisas para as quais me precipitei e, com a mesma impulsividade, abandonei.” (250/251)
Os capítulos têm os nomes de fases da gravidez, ilustrando vários ciclos da sua vida. Partilha o peso por vezes insuportável destas contradições na sua relação amorosa, mas também nas interacções com amigos (com especial destaque para as amigas grávidas, com as pressões e os silêncios tão habituais nestas circunstâncias, mas também as invejas não nomeadas e mútuas – uma pode fazer o que quiser com a sua vida e a outra que tem a sorte de ter um filho e nem sabe), e as consequências no seu mister de escritora e criativa, o abalo que tudo isto representa na afamada “inspiração”.
Em oposição a esta luta, Heti descreve uma fase de resignação e apaziguamento no final. Depois de tomada a decisão de não ser mãe, apesar de si, pela mera passagem do tempo, permite-se aprofundar sentidos e escalpelizar a dor. “Aguentei-me à onda que me tentou arrastar para (…) o entorpecimento que produz bebés (…). Ter escapado a estas garras é tão extasiante e íntimo como ter um filho, mas o oposto de ter um filho, na medida em que o que conquistei não pode ser visto.” (254) “(…) a mulher que não tem filhos é vista com a mesma aversão e censura que um homem crescido que não trabalhe. Come se ela tivesse de pedir desculpa por algo. Como se não tivesse direito a estar orgulhosa.” (255)
Soam a pouco estas palavras, porque o livro é maior que elas. Há nele uma circularidade e uma ligação final à sua mãe que lhe confere uma completude e compensa a leitura a espaços acidentada. A não perder, todos incluídos.
Porque Não Houve Grandes Mulheres Artistas de Linda Nochlin (VS. Editor)
Ensaio publicado originalmente em 1971, só teve tradução em Portugal em 2023 pela sempre pertinente VS.. Infelizmente, a sua actualidade não se perdeu, porque tal implicaria uma reescrita da história da Arte que, apesar de começar paulatinamente a fazer-se, ainda vai no seus primeiros passos.
Provocador, pleno de humor e auto-crítica ao próprio movimento feminista que ensaiava os seus primeiros passos, nele Linda Nochlin (1931-2017) não se propõe a reescrever a história mas antes dar visibilidade a um novo movimento que pretendia revelador: “Incentivar uma abordagem desapaixonada, impessoal, sociológica e institucionalmente orientada revelaria toda uma subestrutura romântica, elitista, glorificadora do indivíduo e produtora de monografias, na qual se baseia a profissão da história da arte, e que só recentemente foi posta em causa por um grupo de dissidentes mais jovens.”
De forma inteligente, desvia a óptica da artista como individualidade, para se focar no sistema institucional que, de forma consciente e organizada, a manteve à parte, não só da ribalta como, a montante, do próprio ensino da Arte, exclusivo dos homens, e da consequente história da Arte, feita de génios extraordinários – a que chama “Rapaz-Prodígio – descoberto por um artista mais velho ou por um perspicaz mecenas” (43) – surgidos do aparente nada, mas que, vendo de perto, revelam antepassados próximos ou distantes, ou tutores ligados à Arte, que “dão uma mãozinha” generosa. Por exemplo, “o jovem Picasso, com a idade de quinze anos e num único dia, foi aprovado em todos os exames de admissão para a Academia de Arte de Barcelona, e mais tarde para a de Madrid: um feito de tal dificuldade que à maioria dos candidatos exigia um mês de preparação. Mas gostaríamos de saber mais (…) detalhadamente o papel desempenhado pelo pai de Picasso, professor de arte, na precocidade pictórica do seu filho. E se Picasso tivesse nascido uma menina?”
Demonstra também a necessidade de desmontar o mito da criação artística, o pendor místico da “tradução da vida pessoal em termos visuais” já que “envolve uma linguagem formal auto-consciente, mais ou menos dependente ou livre de convenções, esquemas ou sistemas de registo temporalmente definidos, que têm de ser aprendidos ou elaborados, seja através do ensino ou de um largo período de experimentação individual. (…) a linguagem da arte (…) não é uma história triste, nem um sussurro confidencial.” (35)
A luz surgiria de um alargamento do estudo e do debate histórico “da inteligência e do talento em geral, e não apenas do génio artístico” e, assim, da requalificação do famoso “talento inato” como invariavelmente fruto das circunstâncias em que o artista desenvolve a sua arte.
Sem se estender demasiado, Nochlin deixa pistas para uma nova visão e práxis do estado da Arte, que deu os seus frutos, mas deixa a nú a imensidão do que resta fazer para uma ainda utópica igualdade.
Os Inquietos de Linn Ullmann ((Relógio D´Água)
Imaginem escrever sobre os vossos pais e a vida em comum com eles num livro que as pessoas queiram ler. E se os vossos pais não passavam de crianças egocêntricas no corpo de um adulto e, por acaso, eram: um dos melhores realizadores e argumentistas da história do cinema – Ingmar Bergman – e uma das actrizes mais marcantes e únicas dessa mesma história, uma musa – Liv Ullmann. A partir de uma ideia de escrever um livro de memórias em conjunto com o pai, nos últimos anos da sua vida, que ficou inacabado e cujas gravações tinham ficado esquecidas numa gaveta, Linn usa o projecto como pretexto para detalhar a sua vida entre famosos e os seus egos.
Com uma escrita acutilante e cuidada, variando entre o registo entre a primeira e a terceira pessoa e adaptando a linguagem à idade da criança/adolescente/adulta que se torna narradora, nem sempre confiável, Ullmann cedo encontra o tom certo para a sua subjectividade e, com elegância e honestidade, detalha verdades nem sempre confortáveis sobre a família, a memória, o peso do passado e o caminho para a sanidade possível num caos controlado e contido.
Uma das grandes surpresas de 2023, muito recomendável.
Enquanto Vamos Sobrevivendo a Esta Doença Fatal de Nelson Nunes (Zigurate)
A morte, tabu primordial, tratado como tema de uma tese que nada tem de científico, embora as referências mais rigorosas contribuam para a sua integridade e, podemos dizer, rigor. Eis o que Nelson Nunes nos propõe neste livro sobre a morte nas suas diversas acepções, com testemunhos pungentes, começando pelo seu, na busca por explicações para o nosso afastamento desta inevitabilidade que insistimos em branquear. Num tom leve mas sem descurar a atractividade da escrita e das perspectivas focadas, Nunes deixa o assunto brilhar e coloca-se aparte como relator do que vê, ouve e pesquisa, não deixando de apresentar a sua conclusão e expor as suas convicções e dificuldades, para que não restem dúvidas sobre os pressupostos desta investigação.
O resultado é um excelente livro, dinâmico e dinamizador de conversas que tardam, no foro íntimo e familiar, e na sociedade como um todo, em que a Morte (ainda) é um fim asséptico reservado a hospitais, morgues, funerárias e religiões.
Um dos livros do ano.
Breves Notas Sobre o Oriente/As Botas de Mussolini de Gonçalo M. Tavares (Relógio D´Água)
Dois livros completamente diferentes, mas com a voz literária imediatamente reconhecível a que Gonçalo M. Tavares (GMT) nos habituou.
Em As Botas de Mussolini, GMT dá seguimento ao ciclo iniciado com o Diário da Peste (ler crítica AQUI) e inaugura uma “História Fragmentada do Mundo”, focando-se em factos decisivos do séc. XX. Diante da incerteza e do terror, procurar um porto seguro na eterna repetição que a História insiste em apresentar-nos, mesmo diante da nossa ignorância.
“Até a Revolução Francesa cortou cabeças excelentes, nenhuma novidade, pois, mas sempre bom colocar também no dia de hoje o que não é novo.” (21), escreve a propósito do dedo acusador do sanguinário Robespierre, sempre consciente das limitações inerentes ao que faz: “nem só de gramática e sintaxe se fazem as palavras de ordem dos tempos atribulados.”(20)
O medo e os presságios negros são frequentes e dão o tom ao livro: “os sinais mais importantes do séc. XXI não virão em luz, mas em corte brusco de clareza e visão./O grande sinal aí está: diante do evidente, nada entendemos” (14).
As Breves Notas Sobre o Oriente são o novo fascículo da enciclopédia Breves Notas, desta vez sobre o que aparentemente constitui um território (ao contrário dos restantes, sobre emoções e artes), mas acaba por resvalar nas mesmas temáticas dos anteriores. O Oriente como um todo tem o seu território indefinido como mero ponto de partida para uma história e mundividência sem fronteiras físicas ou espirituais e morais, e é sobre esse palimpsesto imediatamente identificável que GMT se debruça, para lhe espremer o que tem de universal pela via literária, como sempre com sucesso.
O Império Às Costas – retornados, racismo e pós-colonialismo de João Pedro George (Objectiva)
Mais uma peça no puzzle que urge construir sobre os tempos da revolução e do que se lhe seguiu, aqui num estudo detalhado e bem documentado sobre o movimento dos chamados “retornados”, conceito bem mais abrangente do que se julga, mas também sobre os efeitos da chagada destes milhares na identidade portuguesa e na construção do pós-colonialismo e do racismo cada vez mais denunciado como endémico. Os regressados das colónias eram tratados como estrangeiros, fascistas e reacionários, que iriam colocar em causa os avanços democráticos. Na verdade, o seu papel na consolidação da democracia foi essencial e é essa a tese que George se propõe comprovar, nomeadamente através de dados que comprovam a aceleração do desenvolvimento do Estado Social motivado por estes “novos portugueses”. Como sempre, os factos são a melhor resposta face à ignorância. Pelo meio encontramos uma “bomba”, entre tantas, também documentada, e muito surpreendente: António Mega Ferreira colaborou com a PIDE, com vários artigos em seu nome, em que era agente da propaganda, ou melhor de contra-propaganda, do Estado Novo em meios de comunicação portugueses e estrangeiros. Quantos mais não terão passado incólumes com a caótica chegada da democracia.
Eis um bom começo para a reconstituição deste período desafiante.
O Atrito da Memória – Miguel Cardina (Tinta-da-China)
Outra reflexão sobre o pós-colonialismo em Portugal.
Crítica AQUI
O Ato Criativo de Rick Rubin (Talento)
O guru da música, por detrás da produção (e muitos dizem da criação) de grandes clássicos da cultura popular das últimas décadas (Beastie Boys, Run DMC, Red Hot Chili Peppers, Johnny Cash, Jay-Z, Slayer, Kanye West…) finalmente publica um guia para os iniciados nas lides da criação. Apesar do tom a puxar para o espiritualista, um livro curioso e interessante.
Uma Pequena História da Música de Robert Philip (Edições 70)
O título é bastante ilustrativo do seu conteúdo. Um grande começo para qualquer curioso ficar com uma perspectiva alargada das origens e desenvolvimentos da arte favorita da humanidade, hoje omnipresente e toda poderosa. A escrita é simples e com excelentes referências e vai para além da música em si para falar das suas origens sociológicas e históricas.
O trabalho da Penguin Random House Portugal, em diversas das suas chancelas, com destaque maior para a Alfaguara, acompanhada de perto pela Companhia das Letras e a Elsinore.
A Alfaguara apresentou em 2023 um sólido trabalho de edição de livros excelentes de autoras ainda não publicadas em Portugal. Citando as que mais gostei de ler: Pauline Delabroy-Allard com Quem Sabe, segundo livro desta autora fulgurante que tomou o universo editorial francês de surpresa com o seu livro de estreia e aqui não acusa a pressão, com uma narrativa sólida e tecnicamente irrepreensível, em que parte do pessoal para urdir uma trama de alma literária e, com a ajuda do belo livro Partage de Midi de Paul Claudel, tentar reconstruir uma identidade que o trauma despedaçou; Beatrice Salvioni e a sua A Malnascida, (injustamente colado à omnipresente Elena Ferrante, porque dotada de um acinte e de uma raiva na escrita e na voz das personagens que escapa à napolitana), Miriam Toews e o seu fantástico e baseado em factos reais A Voz das Mulheres (na base do argumento adaptado vencedor do Oscar na sua categoria para o excelente filme Women Talking), a singular Aurora Venturini com o seu fantástico As Primas, que ganha um prémio literário quando a sua autora conta já 85 anos de idade e uma vida inteira de manuscritos publicados em editoras independentes e/ou rejeitados. Uma história familiar em que a narradora Yuna tem problemas cognitivos e uma ausência radical de empatia com todos os que a rodeiam, principalmente com a irmã Betina, muda, com uma deficiência mental profunda que a condena a uma cadeira de rodas. “É o monólogo de uma idiota, mas não há muita fúria: há, pelo contrário, desassossego e, sobretudo, nojo”, diz-nos o prólogo de Mariana Enriquéz, que continua: “As primas Yuna e Petra são aliadas e tentam deter a cadeia de abusos que também sofreram, mas nada é suficiente neste romance pessimista e brutal, sem heroínas claras, um romance de mulheres extremas, doentes, obcecadas, maltratadas.” Não lerão nada igual.
Na Elsinore vimos finalmente publicada por cá a fabulosa escritora mexicana Fernanda Melchor com o seu melhor livro Temporada de Furacões. Com uma escrita torrencial, sem freios na linguagem e na imagética dura e violenta, é o próprio texto que, quase só por si, é uma agressão, tal o apuro do estilo e a catadupa de vocábulos e evocações cortantes. Aqui a mulher desconhecida e misteriosa (livre, portanto) é bruxa maltratada e ostracizada, mas mantida por perto para ser abusada pelo povo que a condena, mas se serve dela para consolo físico e espiritual. O homem é dominador e inclemente, violento diante da contrariedade e da negação numa sociedade que o alimenta de raiva e pobreza. A morte é banal como a vida e a escassez facilita os desvios e a crueldade.
Brutal e fascinante.
A Companhia das Letras destacou-se pelo lançamento de uma colecção de não-ficção literária, com dois nomes consagrados: Susana Moreira Marques e Djaimilia Pereira de Almeida.
Com este seu terceiro livro Lenços pretos, chapéus de palha e brincos de ouro, Susana Moreira Marques segue o rasto trilhado há décadas atrás pela jornalista e activista Maria Lamas no seu As mulheres do meu país, do final da década de 1940, entretanto reeditado e com direito a exposição das suas fotos na Gulbenkian. Procura traçar os paralelos entre as mulheres que vê naquelas fotos e as que encontrou nas suas pesquisas pelo Portugal de hoje. Desconcerta pela ausência de conclusões, deixando o que vê e escreve ao julgamento de quem lê. A sua escrita segura vem, desta feita, com traços algo incertos, como se lhe fosse impossível ser assertiva ou definitiva diante do que vai encontrando, como se escrevesse não só para esquecer, como para se perder. “«Os velhos esperam a morte»/«Falar na estrada para a praia»/É de frases assim, encontradas em papéis soltos ou em cadernos, mas separadas dos seu contexto e por isso tornadas mais poéticas ou enigmáticas, que depois me lembro melhor. Tendo a esquecer mais rapidamente as descrições demasiado precisas dos lugares aonde ela vai e a informação demasiado concreta sobre as condições de vida que encontra. Tendo a esquecer aquilo que não me permite conceber o país que desejo recordar.” (28)
Como escreve mais adiante, detalhando o objecto do livro: “Não é tanto a resposta que interessa, antes a maneira como a pergunta é formulada./Esse é o principio de uma boa conversa. Seja com alguém que se conhece bem, seja com uma pessoa com quem nos cruzamos na beira da estrada.” (77) Há uma desolação latente pela constatação de que, mesmo diante dos inegáveis progressos na posição da mulher na sociedade portuguesa, há muito do mais íntimo que se mantém prisioneiro.
“Outra frase que se ouve muito é que não têm tempo. Não têm tempo para se perguntarem se são felizes ou infelizes. Não têm tempo nem para o sonho nem para a ficção. Ou seja, não têm tempo para procurar outras possibilidades nem para encontrar alternativas à narrativa da sua própria vida./Até ao fim da vida não têm tempo; e aquilo que era uma necessidade transforma-se numa condição.” (91)
Com O que é ser uma escritora negra hoje, de acordo comigo, Djaimilia Pereira de Almeida retoma a tradição, infelizmente rara por estas bandas, do manifesto. Debate-se com as contradições da sua condição de escritora negra, privilegiada por ter na escrita o poder de projectar a sua voz e a culpa que transporta constantemente por sentir que lhe falta algo para a que a sua legitimidade seja total ou a verdade do que faz seja incontestável. Escava pela escrita o seu espaço, investiga os passos em volta, cheira a terra revolta que deixa para trás, passando por personagens essenciais do seu passado e identidade para, no final, se recentrar na escrita como libertação e jogo em que arrisca para voar, para garantir a liberdade e indagar o Outro com a sua presença e a afirmação da sua unicidade. A entrevista que acompanha o manifesto ilumina ainda melhor a mulher diante dos seus leitores.
Dois livros poderosos. Duas edições felizes. Venham os próximos.
TEATRO
Guião para um país Possível (Teatro Sá de Miranda)
A melhor peça de 2024 já estreou em 2023.
Terão amplas oportunidades de a ver, com a digressão que o colectivo Cassandra planeou para o ano em que se festeja meio século de democracia em Portugal. Vão ouvir falar dela pela sua capacidade de retratar episódios marcantes do Portugal pós-25 de Abril, usando os diários que contêm tudo o que é dito e feito na chamada “casa da democracia” – a Assembleia da República.
Depois de assistir ao primeiro ensaio para uma antevisão (leiam aqui as primeiras impressões), confirmei tratar-se de um trabalho marcante e cuidado, que, apesar das suas insuficiências, consegue cativar o público pelas escolhas que faz e pelo desempenho estelar da dupla de actores Margarida Carvalho e João Melo.
O material tem sempre razão, como dizia o João Mineiro na conversa pós espectáculo a que assisti no Teatro Sá de Miranda (Viana do Castelo) lotado, num frio e chuvoso 8 de Dezembro. Neste caso, o resultado de uma pesquisa aturada e partilhada de cinco décadas de Diários da Assembleia da República trazida para os diálogos e a encenação. A força da peça reside na capacidade de reproduzir actos e expressões, tiques e cortesias da etiqueta parlamentar, com fidelidade à realidade, tornadas cómicas pela sua repetição, e ao mesmo tempo desmascaradas como obsoletas e absurdas, porque incapazes de evitar os insultos mais primários e quase infantis por parte de quem se espera o decoro e atenção no cumprimento das suas funções.
A fragilidade vem também dessas escolhas, limitadas como seriam necessariamente, mas em simultâneo algo maniqueístas, como se nas decisões importantes do País encontrássemos algo como o Bem e o Mal, ligados respectivamente à esquerda e à direita do espectro político, o que acaba por redundar numa generalização excludente da diferença e da particularidade que escapa ao olho comum e retira a tão necessária subtileza e metáfora do território dramático. O elemento de processamento dos factos/actos/palavras é arredado da cena e o que vemos é uma transposição encenada dos textos escolhidos, com escolhas felizes e acertadas na sua esmagadora maioria, é certo, entre o humor, a poesia e o tão necessário confronto de ideias e idiossincrasias na essência de uma democracia saudável.
Embora entre o ensaio que vimos e a versão final haja grandes avanços no sentido de privilegiar o espaço vazio sobre a verborreia, faltam os silêncios, o desafio ao público a parar, o que se lamenta porque quando surgem são impactantes. Como já o tinha feito de forma excelente na sua anterior peça Monólogo de uma mulher chamada Maria com a sua patroa (em que a representação se inicia com uma longa e pormenorizada limpeza do palco, com momentos de humor e absurdo à mistura), Sara Barros Leitão opta por abrir a peça com os dois actores num despique para decidir quem melhor representa o seu papel de secretário da Assembleia, quase sem palavras, pura fisicalidade e expressividade.
São duas as cenas (sucessivas, por coincidência) paradigmáticas desta dificuldade em dar espaço ao silêncio. A primeira é a cena pungente e central do monólogo do deputado Santinho Pacheco, eleito pelo circulo da Guarda e interpretado de modo irrepreensível pela Margarida Carvalho, depois da lista interminável dos votos nominais dos projectos-lei sobre a eutanásia. O momento central acaba prejudicado por uma iluminação que não dá o destaque merecido ao rosto da actriz e atrás, o João Melo move-se arrumando o cenário, perturbando a atenção do espectador e a intensidade do momento com algo banal. Segue-se uma cena em que um cigarro é partilhado entre dois deputados silenciados pelo peso do momento e pelo fumo (escolho acreditar ser um momento de solidariedade interpartidária com o testemunho do deputado) e mesmo aí corre em off um discurso contra o uso do tabaco no interior da Assembleia, quando seria bem vindo, para usar a gíria culinária, algo para limpar o palato antes do regresso ao buliço.
Como dizia Jon Fosse, no recente discurso de aceitação do Nobel, “quando escrevia teatro, podia usar o discurso silencioso (…) Tudo o que tinha que fazer era escrever a palavra pausa (…) Nestas pausas pode estar tanto ou tão pouco. Aquilo que não pode ser dito, aquilo que não quer ser dito, ou é melhor dito não dizendo nada./Ainda assim, estou certo que o que melhor transparece das pausas é o silêncio.” (tradução minha daqui)
Os momentos memoráveis, as cenas felizes, são diversas e com elas a esperança em dias melhores. A intervenção da inesquecível Natália Correia, a colocar no devido lugar o machismo, com toda a finura e inteligência, a despedida da saudosa Odete Santos, com um diálogo elevado sobre a Odisseia e filosofia ou a mais recente “troca de galhardetes” entre a bancada do Chega e o Presidente da Assembleia da República Augusto Santos Silva.
Uma celebração da democracia, essencial para um começo de conversa que tarda sobre as suas origens e consequências, até à estabilidade de que hoje desfrutamos.
Iphigénie (TNSJ)
Tiago Rodrigues recruta um elenco bilingue neste novo “episódio” da sua série de peças em que ressuscita uma mulher injustamente morta pelo cânone ocidental, desta vez Ifigénia, sacrificada pela vitória em Tróia às mãos do seu pai Agamémnon. Aqui vive e argumenta pela sua existência separada dos desejos e ambições da Pátria e da Família. Os mesmos pesos de sempre. Excelente texto, “comme d´habitude”, complementado com a projecção de um belo amanhecer na costa, em que as tropas descansam aguardando o pior que não chega. Fintar o destino, com humor à mistura e interpretações estelares. Eis mais uma peça vintage de Tiago Rodrigues, de pedra e cal no panorama teatral contemporâneo e com um excelente trabalho em Avignon.
As Areias do Imperador (TNSJ)
Baseada na trilogia homónima de Mia Couto, As Areias do Imperador preserva o lirismo do original, quer na beleza do texto, quer no poder que Victor de Oliveira consegue retirar das cenas, aparentemente simples, do espectáculo.
O facto de utilizarem o changane (lingua local/dialecto local) para as personagens locais e o realismo com que são retratados os rituais (de luto, de feitiçaria, de nascimento) trazem uma intensidade renovada ao enredo, e ao mesmo tempo conferem às personagens angolanas (e por inerência aos actores que as representam) uma dignidade acrescida, validando-as na sua cultura contemporânea à invasão portuguesa, um ponto de partida para o trabalho de adaptação e encenação. Como nos diz Victor de Oliveira no texto de apoio: “Mia Couto parte da fronteira para escrever o seu romance e é a fronteira, esse lugar do “entredois” que eu conheço tão bem, que me interessa procurar num projeto como este. Não apenas a equipa de trabalho será composta por atores e técnicos moçambicanos, portugueses e franceses, mas a adaptação do texto e a encenação tentarão explorar espaços onde se possa interrogar os clichés e dar uma outra imagem dos mitos com os quais todos nós crescemos e que supostamente representam Africa.”
A história foca-se num sargento (Germano de Melo, numa interpretação surpreendente do Miguel Nunes: voz colocada, sem necessidade de amplificação, presença e densidade emocional) que nunca se percebe se é colocado em Angola ou se auto-indica para o exílio numa terra longínqua, numa tentativa (condenada ao falhanço) de evasão da sua realidade, e na família local (Imani, Katini e Chizaki, filha, pai e mãe) capaz de falar e escrever português, que o Império, por intermédio de Germano, decide recrutar para os seus intentos expansionistas, acabando este por se apaixonar pela adolescente (15 anos) Imani, execelente interperetação da Sufaida Moyane, a verdadeira protagonista da trama, num desempenho pleno de entrega da actriz. Imani acaba por ficar encarregue de se aproximar do imperador Gungunhane e informar o Sargento dos seus passos.
Gungunhane (um imperial Klemente Tsamba) já perdido, isolado na sua pequena corte de consortes e conselheiros, dono do título mas despojado de todo o poder de outrora, aguarda a sua sentença, mantendo a altivez e dignidade, conta ainda com tratamento preferencial à chegada à metrópole, mas é humilhado com um desterro forçado em Angra do Heroísmo, onde ficará até ao final dos seus dias.
O destaque também para o histórico confronto entre o colonizador convicto e o colonizador arrependido, por via de cartas, representadas numa cena partilhada à boca de cena, entre o capitão António de Sousa (um quase afónico e brilhante Miguel Moreira) e o sargento Júlio Araújo (Daniel Pinto, magnético).
Um espectáculo surpreendente.
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