Esta espécie de crónica nasce por estes dias de incerteza e negatividade, em que Karl Kraus (1874-1936), caso fosse vivo, provavelmente se manteria em silêncio, à imagem do que fez após a ascensão de Hitler ao poder, em Janeiro de 1933, deixando para a posteridade a explicação em forma de poema: “A Palavra morreu, com esse mundo a acordar” (tradução de António Pinto Ribeiro).
Kraus legou à humanidade uma obra gargantuesca a que inicialmente chamou “Os Últimos Dias da Humanidade. Um Pesadelo.”. O subtítulo caiu nas versões posteriores, dado que a realidade que o texto literalmente citava cumpria na perfeição o desiderato de recriar o sonho negro ou, nas suas palavras, o “carnaval trágico” da I Guerra Mundial (I GM).
Cidadão culto e interventivo desde a juventude, soube construir um equilíbrio entre a proximidade com a nata sócio-cultural austríaca e um espaço de liberdade e independência nesse todo, cuja frequente opacidade, agravada em épocas de crise, contrariava a sua sensibilidade e valores.
Cedo fascinado pelo universo teatral, embora consciente da sua inabilidade para a representação, conclui serem os recitais públicos (fez largas centenas em toda a sua vida), o veículo certo para apresentar a sua mundividência à sociedade, nomeadamente através dos textos que produzia e da obra dos antecessores e contemporâneos que venerava, como Shakespeare e o seu príncipe caído em desgraça Hamlet, cujos ecos ressoam na sua magnum opus.
Em 1899 fundou a revista Die Fackel (“O Archote”), uma das poucas vozes capaz de escapar impune ao jugo feroz a que foi votada a imprensa da época, conseguindo algo inédito e audaz: uma crítica à inteligentzia austríaca, com especial enfoque na imprensa, mero joguete e eco do coro propagandista, nacionalista e belicista do regime imperial.
Servindo-se da sua rede de contactos, utilizava citações de documentos oficiais, artigos noticiosos, editoriais e afins para denunciar a corrupção e a violação inconsequente dos mais fundamentais direitos e liberdades, optando pela sátira dos costumes, apoiada numa sólida investigação dos temas.
Embrenhado no desastre nacional e internacional que via desenhar-se, começa a escrever “Os Últimos Dias da Humanidade” em 1915, cuja versão inicial é publicada em quatro fascículos da sua revista, entre Dezembro de 1918 e Setembro de 1919, possibilitando-lhe o acesso a documentação disponível apenas após o brutal conflito.
Cinco actos, prólogo, epílogo, 229 cenas, 1304 minutos na leitura da sua versão final, foi representada na íntegra apenas em 1964.
No Teatro Nacional S. João (TNSJ), a representação de ”Os Últimos Dias da Humanidade”, encenada por Nuno Carinhas e Nuno M. Cardoso, a partir da recente tradução do original na sua totalidade por António Sousa Ribeiro (editada em Outubro pelo Teatro Nacional S. João e da Editora Húmus), é pioneira em Portugal por uma miríade de motivos.
É a estreia da obra em palcos nacionais, num tempo em que os pontos de contacto com a realidade nacional e planetária são demasiados para uma enumeração exaustiva.
A estratégia escolhida para a sua apresentação ao público é surpreendente, mantendo, dentro dos possíveis, um equilíbrio entre a manutenção da essência do texto e a garantia da atenção do público. A opção foi pela divisão em três partes distintas e independentes, num total de quase nove horas e uma maratona final, que junta as três partes, no dia 19 de Novembro.
Um TNSJ reconfigurado, com a plateia convertida em palco extenso, coberto de gravilha negra e público a 360º, ajudou na criação de uma experiência mais intimista e imersiva.
Um trabalho árduo, com a escassez de meios por demais conhecida nos meios teatrais portugueses, envolvendo uma equipa extensa, de onde se destaca o notável elenco de 21 actores, revezando-se numa impressionante sucessão de registos, polvilhada de actuações memoráveis.
Em retrospectiva, a sua proeza maior é a transfiguração do que, em abstracto, seria uma experiência de pura resistência física e intelectual, num exercício de contemplação atenta da tragédia da nossa história mais abominável e de confronto mediado com a encarnação da todas as nossas piores fragilidades e demónios.
“Pensem nisto: não há heróis. É a humanidade que enfrenta o apocalipse.”, diz Nuno Carinhas ao elenco durante o ensaio, segundo o testemunho do sociólogo Bruno Monteiro no fantástico manual de leitura disponibilizado pelo TNSJ. Não temos sequer a fuga para os modernos anti-heróis, alívios cómicos e/ou irónicos para o lado negro que, em dimensões e tempos distintos, partilhamos e conhecemos.
Os actores submetem-se ao poder avassalador das omnipresentes palavras, tantas vezes em verdadeiras torrentes opressivas e incessantes, como punhais, lembretes ou meros placebos para dissolver o contexto brutal onde são proferidas, perante a inacção dos agentes activos e passivos que delas se servem, ante o horror e a agressão pura.
Toda a peça tem por base uma série de recorrências linguísticas, contextuais, de personagens e até de cenários, dando ao espectador uma noção (imprecisa) da progressão cronológica e histórica, assim como do desenvolvimento (ou de trágica previsibilidade) das personagens, o que reforça o choque entre a realidade trágica e a comicidade satírica de diversos trechos, conferindo também coerência no todo.
Os pregões progressivamente mais sangrentos e catastróficos dos ardinas, expressões como “aço no sangue”, “ter pé firme”, “guerra é guerra” repetidas à exaustão, mesmo perante as situações ou relatos mais insólitos, o trio de soldados (Nowotny, Pokorny e Powolny) na rectaguarda que, como meros autómatos, se cumprimentam jocosos e comentam mulheres, política e as últimas parangonas do jornal, o facto de todos os actos se iniciarem exactamente no mesmo local (no centro de Viena, “Picadeiro da Ringstraße. Esquina da Sirk.”, segundo a tradução mais recente de António Sousa Ribeiro), algo mantido nas três partes da peça no TNSJ…
Instrumentos orquestrados para que esta sinfonia soe familiar e em aparente progressão, apenas para lhe contrapor subtis regressões e transgressões, seja no ânimo dos transeuntes e habituais, cujo aspecto físico se vai degradando e a sequência discursiva indicia uma espiral de descrença e desespero, com o culto crescente da violência, crueldade e hedonismo entre as mais altas patentes, uma burguesia desacreditada e a nobreza que, de nobre, apenas conserva o verbo, mascarado sob o pesado manto diáfano do discurso único, que imprensa e jornalistas difundem incessante e agressivamente.
A verdadeira guerra está longe. É feita na frente de batalha pelos mais pobres e ignorantes, recrutados e voluntários, que sucumbem à doença, intempéries e insalubridade das trincheiras, tornadas pântanos onde se afoga a ralé, aqueles que não conseguem “ir lá cima” para obter uma dispensa do serviço militar, entretanto tornado obrigatório.
Apesar de ser um drama sobre a guerra, são raríssimas as incursões directas na mesma. É a rectaguarda que Kraus disseca com rigor documentarístico, consciente de que já não é no terreno que a vitória e as estratégias se decidem. Erige um gigantesco puzzle de citações das sumidades políticas e sociais, que alimentavam os últimos estertores do moribundo Império Austro-húngaro, onde a incompetência casada com a ganância e os delírios de grandeza eram legitimados pela irresponsabilidade e pela aberrante estetização da guerra, que Walter Benjamin denunciou quando falava de Marinetti e dos futuristas.
Todos agridem mas nem todos são agredidos. Ninguém sai incólume ou inocente, Kraus incluído. Nem o Eterno Descontente – síntese de oráculo, guardião da intemporalidade da Moral e da Ética, “Velho do Restelo”, coro trágico e narrador omnisciente e omnipresente – se exime da sua inevitável culpa, enquanto retrata a alheia com minúcia.
Com grande destaque ao longo da peça, é tido como a encarnação dramática do autor e toma para si as intervenções mais memoráveis, pela sua sua eloquência, mas também pela sua lucidez, lógica e rigor histórico.
Apesar da injustiça de destacar individualidades entre este elenco de excelência, certos desempenhos sobressaem, quer pelo destaque que o texto lhes confere e pela encenação da peça, quer pelo modo como gravam na memória do espectador a sua imagética e maneirismos físicos e linguísticos.
António Durães, que muitos conhecem da excelente série “Boys” da RTP1, é magistral na sua quase epopeia dramática, com páginas e páginas de texto decorado, emprestando ao Eterno Descontente a profundidade e plasticidade que o original lhe nega, estendendo-o bem além de mero contraponto humanizado do Optimista (Tiago Sarmento), adepto confesso do discurso oficial e fervoroso defensor da ideologia reinante.
Em palco desfilam dezenas de personagens, vozes cristalizadas com que Kraus convivia directa ou indirectamente, espectros de uma guerra onde, graças ao progresso tecnológico, pela primeira vez na História o combate corpo a corpo é substituído pela distância invisível e sobranceira dos gases venenosos, blitzkriegs aéreos, canhões de longo alcance, submarinos e couraçados.
As figuras dramáticas surgem desprovidas de personalidade e emoções, meras cabeças falantes, acumulando citações acriticamente, como dizia António Sousa Ribeiro, aquando da apresentação da nova tradução integral da obra, no passado dia 12 de Novembro. Toda a sua essência se resume às palavras proferidas, quase sempre citações das pessoas reais que retratam ou de diálogos e documentação que Kraus obteve e/ou já anteriormente divulgara e analisara na Die Fackel.
A excepção que confirma a regra é Alice Schalek, jornalista austríaca do influente jornal Neue Freie Presse, primeira (e única) mulher a ser acreditada como correspondente na I GM, onde esteve na frente de batalha. Interpretada por Sara Barros Leitão, a quase totalidade das suas falas é retirada dos textos que assinou, exemplo acabado de como também o jornalismo de guerra se converte em mera manipulação das emoções, em que a dor, a morte e o sofrimento são banalizados e sacrificados em favor de uma falsa sentimentalidade e uma deturpada filosofia da “arte” da guerra. O seu bordão favorito diga-me o que está a sentir?” é aplicado indiscriminadamente ao cidadão comum, ao soldado raso que dispara um canhão na frente ou aos oficiais que entrevista em pleno submarino.
A genuinidade da interpretação de Sara Barros Leitão quase nos leva a crer na possibilidade de que Schalek acreditaria em todas as palavras que arrebatadamente profere, como uma sonhadora e utópica profeta da pureza dos ideais germânicos.
Paulo Calatré e Pedro Almendra, frequentes co-protagonistas ao longo da representação, surgem em cena com presenças consistentemente arrebatadoras, pela forma impecável como colocam voz e dicção e deixam tanto talento nas múltiplas personagens que encarnam.
Outros desempenhos marcantes ficam por aprofundar, como a assertividade de Diana Sá ou a subtileza e elegância de Marcelo Urgeghe, mas consistência e o brilhantismo são denominadores comuns a todo o elenco nas três partes que compõem esta peça.
Como em todas as grandes obras de arte, o trabalho primordial cabe ao seu destinatário: o espectador. É deste que se espera, senão a empatia, pelo menos a curiosidade e a formulação de dúvidas legítimas, perante verdades tidas por absolutas e propaladas como óbvias, mesmo quando a factualidade envolvente indica a sua negação categórica.
No ano em que a “pós-verdade” é a palavra internacional do ano , é a todos e a cada um que resta combater o silêncio ensurdecedor que sempre rodeia a injustiça e a ignorância, independentemente da sua fonte. Informação, a que faz realmente a diferença, é, foi e sempre será poder e, como tal, propriedade de poucos e nem sempre bons. Já o bom senso e o sentido de justiça são democráticos e acessíveis a quem os cultive.
A esperança é que o TNSJ repita esta experiência noutros palcos pelo país e a mensagem de Kraus às gerações futuras perdure, para que o passado não se repita.
Para uma pequena curta sobre os bastidores, aqui fica um excelente trabalho da Rádio Renascença.
Fotos © Fernando Veludo (NFactos), © Getty Images, © João Tuna
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