home Didascálias, TEATRO Otelo – Teatro Nacional de S. João, 28/09/2018

Otelo – Teatro Nacional de S. João, 28/09/2018

Apresentada pela primeira vez no início do séc. XVII, sobre a peça Otelo já tudo foi dito e analisado nas suas vertentes relevantes, e é das poucas peças de Shakespeare de que existem registos detalhados das diversas encarnações do Mouro, incluindo datas, locais, elencos e pormenores de produção. Perante este contexto, a pergunta impõe-se: em 2018, num Teatro Nacional histórico como o São João, como fazer deste “novo” Otelo uma peça relevante, que se destaque sem esforço das demais? Infelizmente não parece ter sido esse o objectivo que norteou o regresso de Nuno Carinhas ao universo shakespeariano, mas outros motivos de interesse prenderam-nos a atenção até ao caír do pano.

Para começar, o texto. Se já no original é um prodígio de retórica e manipulação, verbal e emocional (cortesia de Iago, o ardiloso e maquiavélico porta-estandarte do guerreiro Otelo, e do próprio Mouro, cuja eloquência discreta prevalece em momentos chave e pede a clemência da História no final), nesta versão, com a hábil e certeira tradução de Daniel Jonas, o português nunca funciona como um impedimento aos duplos sentidos e chalaças, tão ao gosto isabelino e shakespeariano. Desfeita a barreira da língua estrangeira e da complexidade verbal e lexical da sua forma mais arcaica, o texto, necessariamente adaptado na sua versão cénica, surge como um potenciador de empatia e envolvimento do público, tornado entendedor das cenas a que assiste, como comprovam as frequentes gargalhadas e silêncios profundos ao longo da representação. A peça foi entretanto publicada pela Húmus e é extremamente recomendável para qualquer curioso ou estudioso de teatro ou de tradução.

Iago é sem dúvida um vilão memorável, e o encapotado protagonista da trama, quer pelo destaque cénico e textual (tem um número de monólogos bem superior ao de qualquer outra personagem e falas mais longas), quer pela influência no decurso da acção. Mas o aspecto fundamental deste “cão sem alma”, como lhe chama Rodrigo antes de morrer pelo seu punhal, é o carácter de meta-personagem avant-la-lettre, funcionando como verdadeiro dramaturgo em pleno decurso da acção, incentivando palavras e actos como se conhecesse já as suas consequências, soberba que paga com a vida no final sangrento da peça, embora cumpra o seu desígnio de levar o intocável Otelo à desgraça. Dinarte Branco agarra toda a perversidade de Iago com mestria e subtileza, dissolvendo-se na escuridão quando conspira, observa os frutos das suas invectivas ou ataca sem piedade, e enchendo o palco nos monólogos e momentos mais sonantes.

“Jamais dei com um homem que soubesse estimar-se. […] Está em nós sermos assim ou assado. Os nossos corpos são jardins, e o nosso arbítrio o jardineiro. […] Isso depende de nós, da nossa própria decisão. Se não tivéssemos mentes racionais a contrabalançar os pratos dos nossos apetites, o sangue e a baixeza das nossas naturezas levar-nos-iam aos resultados mais perversos. Mas cá contamos com a razão para nos arrefecer as emoções ao rubro, os espinhos carnais, as luxúrias sem freio.” diz-nos entusiasmado, tentando convencer Rodrigo a obdecer-lhe cegamente.”

Encarnação do Mal? Talvez, já que os motivos que vai apresentando para a sua conduta parecem pouco convincentes – o desejo por Desdémona, o desdém pelo facto de os estrangeiros Otelo (mouro, provavelmente da Mauritânia ou arredores) e Cássio (florentino, nomeado tenente por Otelo apesar de pouco ter provado em batalha para merecer esse reconhecimento) se manterem acima de si (verdadeiro veneziano) na escada social ou a pura ambição desenfreada. Mas bem mais do que isso, o símbolo acabado da cobiça do poder a todo o custo e por todos os meios, a coberto do anonimato e da escuridão. Necessitará o Mal de motivo que não o prazer sádico de quem o leva a cabo?

Em termos interpretativos, cabe a João Cardoso o maior desafio, com o surpreendentemente manipulável Otelo, cuja dureza e coragem no campo de batalha de pouco valem perante as minudências assoberbantes do ciúme e da vingança. Perdida Desdémona, como Iago lhe faz crer através do seu jogo de encobrimentos e mentiras (ironicamente tendo por objecto central um lenço de mão bordado da amada, simbólico quer da mentira facilmente desmascarável de Iago – pelo seu tamanho, funcionando como “micro-cortina” – quer da facilidade como os sentimentos femininos (e a própria mulher) são ignorados, guardados no bolso ou passados de mão em mão, conforme as conveniências e disposições dos homens), resta-lhe a loucura e o “caos”, a derrocada de todo um historial de honra, dignidade e serviço a causas maiores do que a sua existência, à partida condenada à subalternidade pelo tom de pele.

Optando por se rodear dos que lhe são queridos e com quem trabalha há algum tempo, com os resultados conhecidos, Nuno Carinhas esquece o foco nos problemas rácicos, historicamente com diversas abordagens (elencos de diversas etnias, Otelos brancos pintados de negro, Otelos brancos para um elenco negro, Otelos negros…) e interpretações (Otelo como metáfora para o Outro, o desconhecido e o seu caminho para a integração plena numa sociedade naturalmente hostil à diferença), para se focar na solidez das interpretações e intemporalidade do texto, opção sensata que acaba recompensada, tornando todas as problemáticas satélite meramente instrumentais, matéria para a crítica literária e sociológica.

“Se começamos a narrativa na plateia, no lugar do público, é porque queremos estar tão próximos quanto a arquitectura permite. Das mulheres e dos homens nossos contemporâneos com quem partilhamos ficções – as feições dos dias.” – diz-nos no extenso e interessante Manual de Leitura, disponível AQUI. A surpresa de encontrar os actores ao nosso alcance, as suas vozes audíveis sem qualquer amplificação e com iluminação escassa, logo no início da peça, foi amplamente compensadora, envolvendo a plateia desde o primeiro segundo, independentemente do lugar ocupado.

Ao longo da peça, o dispositivo cénico bastante despido e funcional acaba por cumprir o seu papel sem interferir com a acção, o que já de si é digno de nota. Por outro lado, salvo raras excepções, pouco faz para elevar a peça, ignorando assim mais um trunfo que a destacaria das demais. Um dos exemplos mais notáveis do uso criterioso da cenografia é toda a cena da morte de Desdémona, em que uma espécie de banco de madeira serve de leito matrimonial (onde a relação Otelo/Desdémona nunca chega a ser consumada), um longo pano branco é o lençol, que será mortalha da jovem veneziana, e um jogo de espelhos manipula luz e sombras. A alegria de Desdémona no leito nupcial encara, sem filtros, a raiva de Otelo em todo o seu negrume e sede de sangue num confronto desigual e de desfecho antecipado.

O longo pranto de raiva e choro perto da histeria de Otelo/João Cardoso anterior a esta cena, lentamente passa de impressivo a depressivo e deprimente, com a intensidade a dar lugar a tensão e vergonha alheia, como quando vemos um concorrente de um reality show musical falhar na actuação final, desafinando por excesso de vibrato. Nem a hipocrisia cruel de Iago, verdadeiro Judas abraçando o seu inimigo antes da traição, salva a cena. Já o desespero de Desdémona, perante a inevitável morte às mãos do amado, é excruciante e demolidor. Nos seus berros e fisicalidade, Maria João Pinho veicula a nossa comoção e espanto perante o poder de um acto que, apesar de tão contrário aos valores que nos regem, ecoa séculos de tantos outros similares, e se repete, ainda hoje, a um ritmo desconcertante. “Estou feliz por ter terminado a revisão desta cena terrível; é insuportável.”, palavras de Samuel Johnson relembradas por Marjorie Garber, no fantástico texto traduzido por Rui Pires Cabral no Manual de Leitura.

A música utilizada durante a peça nem sempre tem a eficácia pretendida, excepto no final, com esta La Valse de Ravel, no seu momento mais apoteótico, a fechar a peça na perfeição, convidando o aplauso ao elenco reunido na boca de cena. No entanto, ao longo da representação, a banda sonora torna as cenas mais pesadas, cinematográficas e melodramáticas, colorindo momentos em que o silêncio e o poder das palavras não necessitariam de artifícios para o seu total impacto.

O balanço final deste Otelo é francamente positivo, com excelentes actuações e uma coesão notável de um elenco experiente, cuja familiaridade e entreajuda em palco é palpável e tem o condão de levar qualquer peça a bom porto, independentemente de outras insuficiências. A digressão pelo País e Europa não deverá tardar e uma oportunidade para a ver será sempre de aproveitar.

Foto © João Tuna

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