É o próprio Jorge Luis Borges quem resenha, ao reflectir no seu percurso, uma «vida dedicada às letras e (algumas vezes) à perplexidade metafísica» (p.229). Um livro como Outras Inquirições é um exemplo desse princípio levado ao máximo. O projecto subjacente a Outras Inquirições, livro originalmente publicado por Borges em 1952, retoma, mais do que o título inicial Inquisiciones (1925), o propósito e a técnica desse primeiro livro de ensaios borgesianos. E, de certa forma, ambos viriam a ser prolongados na colectânea póstuma Biblioteca Pessoal (Quetzal, 2014), cuja primeira edição data já de 1988. Embora Outras Inquirições não constitua, como acontece em Biblioteca Pessoal, um conjunto de prólogos a outras tantas obras seleccionadas por JLB, a aproximação aos autores e ao seu trabalho é, em grande medida, semelhante, porque é, sobretudo, a mesma erudição irradiante e multímoda que anima qualquer um destes títulos. O próprio elenco autoral chega a tocar-se de perto, ou até a repetir-se em determinadas ocasiões. Pense-se, por exemplo, em Ramón Gómez de La Serna, que comparece, quer em Biblioteca Pessoal, quer em Inquisiciones; ou recorde-se um nome como o de George Bernard Shaw, presente, tanto em Biblioteca Pessoal, quanto em Outras Inquirições. São apenas dois exemplos entre diversos possíveis. Qualquer leitor de JLB sabe que a pauta deste autor é obsessiva. Não são apenas os labirintos, os sonhos, os livros e as bibliotecas o que em JLB se revisita – são também os autores e as suas obras. Uns e outras vão sendo recapitulados, numa atmosfera de encantamento, como se JLB respondesse a uma toada hipnótica e irreprimível. JLB era um devorador enciclopédico de livros, autenticamente voraz e – como devia ser qualquer leitor digno desse nome – pessoalíssimo nas suas escolhas e apologias.
O ensaísmo de JLB é auto-reflexivo, dinâmico, atento a múltiplas variantes, um hábil captador de analogias e equilíbrios não raras vezes inesperados. Os ensaios de Outras Inquirições não constituem uma ortodoxia, mas uma deriva informada. Porque este não é o terreno para compendiar, mas para ser livre. Uma condição, no caso de JLB, sobretudo individual, mas que tende para a universalidade. Uma dos mais apetecíveis capacidades do JLB ensaísta é o da poderosa síntese, semelhante uma pedra que fosse polida até se aproximar o mais possível da perfeição. Sirvam de exemplo alguns casos apenas, como essa fórmula que fixa «o triste e labiríntico Henry James» (p.21); o postulado segundo o qual «um grande escritor cria os seus predecessores» (p.87); ou a proposição que avança: «quem procura novidades, irá encontrá-las com maior facilidade nos antigos» (p.94). Qualquer um deles apresenta a possibilidade suplementar de funcionar como um auto-retrato oblíquo do próprio JLB. Enquanto super-leitor, Borges concebe cada livro, cada autor, como um espelho das suas próprias compulsões, dos fantasmas que assombram o seu imaginário e povoam as referências do seu edifício de criador – «as coincidências e as novidades importam menos do que aquilo que julgamos verdadeiro» (p.254). Nesse sentido, é muito menos premente a preocupação de ser justo, correcto, aceitável, do que o desejo de cumprir-se enquanto veículo dos desígnios que forjam o seu próprio panteão literário. Ao falar, por exemplo, dos livros de H.G. Wells, JLB diz que estes foram os primeiros que leu e que, possivelmente seriam os últimos que viria a ler. Como se vê, JLB não padecia do complexo da objectividade. Pelo caminho, expende, afortunadamente, as opiniões mais idiossincráticas, ou até impopulares, mas, ao mesmo tempo, as que parecem mais sinceramente sentidas – «Naquele tempo não havia (sem dúvida felizmente para as crianças) literatura infantil» (p.76)
Como escreveu JLB, na apresentação de uma das várias edições das suas integrais: «Como De Quincey e tantos outros, soube, antes de ter escrito uma única linha, que o meu destino seria literário.» (Obras Completas 1923-1972, Emecé Editores, Buenos Aires, 1974). Daí, por certo, que tanto lhe interessasse sempre o que chama «acaso dos livros» (p.145) E noutra das incontáveis alusões a Thomas de Quincey, desta vez, rápida e assaz discreta, como se a escondesse num qualquer recanto mal iluminado de Outras Inquirições, escreve JLB: «é tão vasta a minha dívida que especificar uma parte parece repudiar ou calar as outras» (p.127). A obra do polígrafo inglês, na sua variedade incalculável, no vastíssimo panorama que alcançou, parece uma referência espectral, como se Borges tivesse de se medir perante aquele escritor de produção imparável e tão variamente genial. Ou como se lhe fosse forçoso fazer alguma coisa em relação a esse legado prodigioso.
JLB está, no fundo, mais ou menos preso a um modelo a que não pode completamente fugir. Tem de pincelar a vida e esboçar a obra de um autor. Não há muita forma de escapar a esses imperativos. E, no entanto, JLB consegue evitar, quase sempre, a linearidade e a sensaboria. Oscar Wilde – outro dos seus autores – é, para Borges, «um cavalheiro dedicado ao pobre propósito de espantar com gravatas e com metáforas» (p.111) e que «quase sempre tem razão» (p.112). Sem fugir à leitura atenta das obras e dos seus autores, à «análise» (a palavra dificilmente seria adequada), o ensaio de Borges parece mais um colóquio amistoso. Ou, pelo menos, uma via de acesso para uma partilha, quase uma fraternidade paradoxal – alheia às épocas e às limitações da lógica mais elementar. Mesmo que comece ensimesmado, JLB procura o outro, busca uma possibilidade de diálogo, da comunicação de um fascínio. No ensaio que é, possivelmente, o ponto máximo deste livro, aquele que JLB dedicou a Nathaniel Hawthorne, assim se descreve uma personagem do escritor norte-americano: «um homem sossegado, timidamente vaidoso, egoísta, propenso a mistérios pueris, a guardar segredos insignificantes; um homem frouxo, de grande proeza imaginativa e mental, mas capaz de longas e ociosas e inconcluídas e vagas meditações; um marido constante, defendido pela preguiça.» (p.83) Uma precisão estudada, talvez irónica, indício claro de um zelo apenas ao alcance de poucos.
Noutro plano, não são, infelizmente, poucos os casos em que a revisão deste livro não terá sido a mais atenta. À conta, uma vez mais, do chamado Acordo de 1990, sucedem casos como o seguinte: «com todas as coroas, com todos os cepros» (p.88), onde devia estar «cetros», porque «ceptros» foi mudado noutra coisa, com o «Acordo». Ainda no mesmo capítulo ortográfico, onde se lê «a second ator» (p.222), em inglês, é claro que deveria ter surgido a palavra inglesa «actor». O que significa que não são exagerados os rumores que dão conta da interferência do AO90 no inglês que se pratica entre nós. O que, ainda assim, é o mal menor. Ortograficamente falando. Por outro lado, este livro levanta questões que se relacionam com a própria tradução. Nomeadamente na colagem excessiva à sintaxe espanhola. Quando, por exemplo, se escreve: «o género policial que viria a inventar Poe» (p.98), é óbvio que ninguém imagina o policial a inventar Poe. No entanto, a estrutura frásica só funciona sem ambiguidades em espanhol. E se há casos intermédios, em termos de estranheza – «a curiosa veneração que tributam os norte-americanos às obras realistas» (p.99) –, outros há que não resultam – «Rumi compôs uns versos que traduziu Rückert» (p.117); «a metáfora que usa Pascal» (p.135).
Foto © Diane Arbus
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