home Didascálias, TEATRO Para Que Os Ventos Se Levantem: Uma Oresteia – TNSJ, 22/10/2022

Para Que Os Ventos Se Levantem: Uma Oresteia – TNSJ, 22/10/2022

Os clássicos são sempre um chamariz para o amante do Teatro, talvez na tentativa de perceber porque tão pouco mudou na forma como se contam histórias e se constroem personagens, mas também como se estrutura uma peça de teatro. Este Para Que Os Ventos Se Levantem, o drama de Orestes, apesar de neste caso (sub) titulado de Uma Oresteia, não me demoveu desse propósito.
Deparei-me com o uso algo indiscriminado dos restos mortais da epopeia de Orestes e da sua linhagem amaldiçoada, injectados de ideias desgarradas sobre Poder, Democracia e os seus valores, na visão do dramaturgo Gurshad Shaheman e dos encenadores Catherine Marnas e Nuno Cardoso. Porque não escrever uma peça original é a questão que surge naturalmente. Reciclar trechos do clássico (bela tradução da Regina Guimarães) para colagem com o texto novo, sem critério discernível, enquadrado conceptualmente como tal, seria aceitável. A ser, como pareceu o caso, uma tentativa de actualização activista para o século XXI, ao incluir temas como a identidade sexual, emergência climática ou a igualdade entre sexos, ficou aquém do expectável. Também nas “adaptações” é possível perder o rumo quando a coerência se esfuma na representação e nas escolhas dramatúrgicas.
O desenho de luz da Cárin Geada (galardoada com o Prémio Revelação Ageas Teatro Nacional D. Maria II 2022) funcionou na perfeição, complementando o parco cenário com o dramatismo, solenidade e descrição que as cenas pediam.
O acompanhamento sonoro instrumental de Esteban Fernandez esteve sempre presente quando o peso da cena o pedia sem a roubar com algum tipo de artifício.
F. Ribeiro, um dos melhores cenógrafos portugueses, utiliza estruturas de dimensões diversas que facilmente servem diferentes personagens e momentos do espetáculo. Exemplo máximo desta produção é a centralidade da enorme parede inclinada de gavetas tumulares, atravessada pelos fantasmas das mulheres que vão perecendo ao longo da acção e em cujo topo algumas personagens se movimentam. Mais tarde, transforma-se em Tribunal no seu reverso, com o piso inclinado para o mais forte: Orestes e a sua “equipa jurídica” formada por deuses. Um exemplo de subtileza e classe, com economia de meios.
O elenco de uma dúzia de actores, metade franceses metade portugueses, revezou-se entre personagens (muitas vezes a mesma em diferentes cenas), e foi outra das forças motrizes da peça, apesar de alguns desempenhos desiguais. Esta alternância conferiu às cenas uma maior riqueza e suscitou atenção e envolvimento do público, empenhado em acompanhar as legendas e as transições. O incómodo surge com a presença de legendas em português para as falas na mesma língua. Talvez fizesse sentido a tradução em francês das falas em português, para garantir não só o foco nas cenas como o tratamento igual para o público não fluente no português, em ano de partilha tão próxima entre França e Portugal como este de temporada partilhada que agora termina. Fica a ideia.
Entre o elenco encontramos surpresas e alguns desapontamentos. Tomé Quirino como Agamémnon deixou-me na ponta da cadeira desde que entrou em palco até “morrer”. Impositivo, brutal, no controlo perfeito das dinâmicas de contenção e explosão, numa actuação memorável. Um touro numa loja de porcelanas. No momento mais importante de toda a peça – a sua morte às mãos de Clitemnestra quando regressa da guerra, vingando a morte da filha Ifigénia, sacrificada aos deuses pelo pai para obter a vitória sobre Tróia – contracena com a actriz Bénédicte Simon, com a cara tapada por uma máscara vermelha, por motivos que foram públicos, mas que se viu seriamente limitada no alcance da sua interpretação, pois apesar de a voz ser bem inteligível, a sua corporalidade e expressividade saíram prejudicadas. Uma mudança de actriz nesta cena essencial, ou pelo menos de máscara, “salvaria” esta cena central.
Os desempenhos dos actores que encarnaram Orestes foram bem díspares. O dotado Mickaël Pelissier é o Orestes ainda inocente e imaturo, cordeiro forçado a ser lobo pelas circunstâncias, convincente e empático na sua interpretação do filho pródigo que regressa a casa para vingar a morte do pai, renitente no início em relação ao que lhe está destinado, como a Pitonisa (óptima interpretação cómica da Inês Dias, num contraste bem vindo com o negrume incessante desde que a cortina sobe, que infelizmente não manteve no julgamento da 2ª parte da récita) lhe comunica: matar a mãe e seu amante Egisto para tomar o trono grego. Carlos Malvarez assume Orestes na segunda parte, a da sua transformação em homem providencial, legitimado pelo sistema judicial e político que o iliba de responsabilidades e o apresenta como limpo e forte, o homem certo no lugar exacto. Mas Malvarez não convence nessa desafiante pele, actuando como se estivesse em bicos de pés quando o texto pedia segurança, consistência e ferocidade. A sua transformação quase instantânea em super-homem soa improvável, não credível, mesmo em ambiente de suspensão da descrença com a ajuda dos deuses.
Telma Cardoso abre e fecha o espectáculo e assume-se como presença incontornável, mesmo quando surge em cena em silêncio. Uma fisicalidade magnética e um controlo expressivo que nos compele a contemplar e aplaudir. Mesmo no delirante discurso final – cujo conteúdo muito se saúda mas soou desenquadrado – em que resgata as almas (femininas) destruídas pela manutenção do poder nas mãos dos homens – consegue o milagre de ser quase uma República no afamado quadro de Delacroix. No entanto, nada do que rodeou essa cena, inclusive o texto, a acompanhou na sua entrega memorável. O que poderia ser um momento inspirador e impactante, perde-se pelo facto de ter o recém empossado ditador Orestes amedrontado debaixo da banheira onde discursa a revolucionária, urgindo a mudança de hábitos e convicções.
O desempenho de Teresa Coutinho é (também) paradigmático da importância da consistência numa interpretação convincente. Foram vários os momentos de um overacting algo confrangedor, desenquadrado com o texto dito e a cena em questão, assim como uma interpretação e uma dicção que pareciam algo obsoletas diante da actualidade que aparentava ser o tom pretendido do texto. A título de exemplo: a cena da morte de Egisto por Orestes, quando Clitemnestra contempla o corpo exangue. Uma ausência gritante de gravitas, o peso que a própria palavra indica e que se exige a uma personagem com tamanha história. Como dizem os britânicos: “you can´t have the cake and eat it at the same time”. Depois de comido, foi-se. O público não se ilude e quebra-se essa ligação preciosa.
O restante elenco francês apresentou desempenhos completos, com destaque para a personagem de Zoé Briau, personagem essencial que consegue convencer Orestes a cumprir o seu desígnio. Nesta como em todas as personagens que foi chamada a interpretar, tudo no sítio certo: movimentos, expressividade, entrega, voz e silêncios.

A ânsia de representatividade, diversidade e actualidade política da peça acaba por ofuscar a sua coerência, dinâmica e consistência, sacrificando assim a qualidade do espectáculo ao altar das ideias, como a filha de Clitmenestra aos deuses da guerra.
O foco no sacrificio das mulheres como apaziguador do homem e do seu poder é certeiro e bem actual, embora longe de ser novo, e peca por ser apenas uma nota de rodapé visual (com o grupo de fantasmas que Orestes e seu pai vai deixando pelo caminho a assombrá-lo) e não uma linha ficcional mais aprofundada e desenvolvida. O foco no choque com o sistema confirma o que outra subtileza conseguiria: a empatia do público, a coerência do espectáculo.
Das personagens clássicas não se pretende que sejam meras talking heads, mas antes repositório do que de transcendente e imanente, passional, humano e falível faz parte da nossa natureza, independentemente da identidade sexual ou lugar na hierarquia de poder.
A insensatez do maniqueísmo mal/bem, virtude/vício era óbvia há mais de dois milénios atrás e sobreviveu ao peso do tempo por conter algo incontornável e discernível à primeira leitura: a qualidade do texto e a sua ambivalência, essencial numa tragédia tão política e visceral como esta. A Arte engagé é uma arma essencial da intervenção cívica, mas o espectáculo teatral sem os corpos, a presença viva e vibrante, ao vivo, do elenco e sem o público acompanhe a viagem (porque afinal é ele o destinatário do espectáculo) de pouco vale.
Será que a actualização muito necessária e recomendada dos clássicos para o século de todas as mudanças terá que ser feita à custa do sacrifício da dramaturgia e representação? Responda quem lê.

Link para a reportagem do Porto Canal

 

Ficha Técnica

De Gurshad Shaheman a partir da Oresteia, de Ésquilo
Encenação Catherine Marnas, Nuno Cardoso
Tradução Regina Guimarães Cenografia F. Ribeiro Figurinos Emmanuelle Thomas Desenho de Luz Cárin Geada Música Esteban Fernandez Assistência De Encenação Janaína Suaudeau
Interpretação Bénédicte Simon, Carlos Malvarez, Félix Lefebvre, Garance Degos, Gustavo Rebelo, Inês Dias, Léo Namur, Mickaël Pelissier, Telma Cardoso, Teresa Coutinho, Tomé Quirino, Zoé Briau
Coprodução Théâtre National De Bordeaux En Aquitaine, Teatro Nacional São João
Estreia 4 Out 2022 Théâtre National De Bordeaux En Aquitaine (França)
Dur. Aprox. 3:20 Com Intervalo M/16 Anos
Espetáculo em língua portuguesa e francesa, legendado em português.

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