Um texto elíptico e emocionalmente denso, assente em poderosos paradoxos, é a sólida base deste Pátria, espectáculo protagonizado por Pedro Almendra. A sua personagem descreve como o seu passado se dissolveu para dar lugar à ficção que, de tantas vezes repetida, se torna obsessão e paranóia, até à loucura. Pedro Almendra gere tempo e espaço com mestria, transformando-se em veículo e nunca condutor ou manipulador, mas em paralelo, apropria-se destas personagens (pai e filho) como se sempre tivessem sido suas, e a revelação desse facto ocorresse ali, em palco, diante de nós.
A identidade e a memória, individual e colectiva, da Pátria e do indivíduo, confundem-se e mascaram-se mutuamente, numa valsa em que os movimentos se vão alargando a cada volta, através de um cumular de informações sobre a vida do protagonista, até à revelação integral, chave mestra desta dramaturgia. Um texto em crescendo, uma encenação minimal e uma interpretação sem mácula são os elementos marcantes desta produção, monólogo que encobre um diálogo com o público, a “quarta parede”, tornado fantasma do passado e alucinação do presente. Pelo meio, tempo para, a pretexto do delírio do protagonista, atentarmos no bem actual absurdo das fronteiras territoriais e da descriminação a que certos povos são sujeitos apenas por circularem entre países e, ao mesmo tempo, no subtexto de comentário à arte da representação, às suas armadilhas e subtilezas e à impossibilidade de separar esta de quem a pratica (e vice-versa), por maior que seja a fidelidade e entrega ao texto original.
“sem querer, inconscientemente, interpreta-se a si mesmo. Faz-se passar pelo homem que gostaria de ter sido, um actor. E de algum modo, na demência, ele afinal realiza-se.”
A atenção exigida é largamente compensada pela complexidade e brilhantismo do texto do escritor brasileiro Bernardo Carvalho e pela disponibilidade de Pedro Almendra, que, em pouco mais de uma hora, percorre um espectro inimaginável de pequenos detalhes físicos, tiques, modulações vocais e tons sentimentais, numa composição (mais uma…) memorável: o retrato de homem que decide algemar-se no âmago do seu ser e esquecer-se de si, irreversivelmente preso num limbo entre a (sua) ficção e curtos lampejos da realidade.
“Não há nada melhor para quem tem medo de voltar para o lugar de onde veio do que esquecer-se de si.”
O desenho de luz e a banda sonora original de João Hasselberg são o perfeito complemento aos silêncios e transições que se vão sucedendo, num todo fluído que torna este espectáculo obrigatório em qualquer palco do planeta. Ver a sala vazia foi algo surpreendente, mas a certeza de que o público saberá acarinhar esta pérola nas récitas que se seguem é tranquilizante.
Pátria será apresentada no Armazém 22 (V. N. Gaia), a 6 e 7 de Dezembro e no Teatro Taborda (Lisboa) a 8 e 9 de Fevereiro de 2020.
Ficha Técnica
encenação • Manuel Tur
interpretação • Pedro Almendra
cenografia • Ana Gormicho
figurinos • Anita Gonçalves
desenho de luz • Cárin Geada
desenho de som • Joel Azevedo
música original • João Hasselberg
assistência de encenação • Maria Inês Peixoto
apoio dramatúrgico • Gil Fesch
produção executiva • Maria Pinto
direcção de montagem • José Diogo Cunha
co-produção • A Turma e Casa das Artes de Famalicão
duração aproximada 70 minutos
M/14
Foto © José Diogo Cunha
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