home Antologia, LITERATURA Paul B. Preciado – Fórum do Futuro, Rivoli (9/11/2018)

Paul B. Preciado – Fórum do Futuro, Rivoli (9/11/2018)

No Fórum do Futuro, Paul B. Preciado pediu-nos que olhássemos para o passado, e para ficções como nação-estado, identidade nacional, heterossexualidade e feminilidade, como uma forma de entender o nosso corpo de agora em relação a normas políticas e sociais, de forma a perceber quais os discursos que se inscrevem no corpo. Numa palestra provocatória, Preciado alia a sua clara herança do trabalho de Foucault, Derrida, Lacan e Butler à sua própria experiência como gender bender, gender hacker e migrante do género que, nas suas próprias palavras, pretende derrubar o Muro de Berlim do sexo. A alusão à cidade outrora dividida não é gratuita ou descabida. O mesmo acontece em livros como Middlesex, de Jeffrey Eugenides, sendo Berlim a cidade que a personagem principal passa a chamar de casa por se identificar, enquanto intersexual, com a cidade também marcada por uma identidade dupla, ou ainda no filme Hedwig and the Angry Inch, de John Cameron Mitchell, em que o muro serve de novo como metáfora para o corpo, agora transexual, de Hedwig, a cantora glam rock que dá nome ao filme.

Preciado, natural de Burgos e que agora está em Princeton, publicou vários livros, sendo de salientar Testo Junkie: sex, drugs, and biopolitics in the pharmacopornographic era, um relevante “corpo-ensaio” que documenta a própria transição de Preciado, como um ato quer performativo, quer político, ao mesmo tempo que analisa a transformação do corpo através de outros químicos, tais como a pílula, Viagra ou Prozac. Preciado apelida-se de “techno shaman”, ao referir a decisão de tomar testosterona sem recorrer à ciência, mas sim ao usar a hormona que um amigo também tomava. Para Preciado, o processo que é exigido pelos médicos a pessoas transexuais é uma imposição vergonhosa, já que, para se poder proceder à transição de sexo, é necessário um diagnóstico de disforia de género, uma ‘doença’ curável através das hormonas femininas ou masculinas, algo que lembra o diagnóstico de outrora da homossexualidade como doença. Para Preciado, construir o seu próprio corpo através da testosterona é escrever um protocolo dissidente contra o próprio protocolo médico, à semelhança do que foi feito por Freud com a cocaína, Burroughs com a heroína ou Walter Benjamin com o haxixe.

Esta conceptualização do corpo como um organismo construído em sociedade passível de ser alterado, reescrito e recodificado, serve como ponto central para a proposta de Preciado: vivemos, neste preciso momento, uma revolução na qual aqueles e aquelas em posições subalternas têm finalmente acesso às tecnologias de poder para responder à hegemonia heterossexual. Nesta mesma revolução, reconfiguram-se, com a presença de corpos previamente ignorados e ostracizados, as limitações do corpo normativo, ao mesmo tempo que se expande a moldura de representação para o que é humano – ou a quem é permitido sê-lo – à medida que se olha para refugiados, indivíduos que se situam fora do espectro sexual e demais corpos dissidentes. Esta revolução é possível através da tal reconfiguração do corpo fora da matriz feminina-masculina, através de drogas e outros fluidos, ou tecnologias que, desde os anos 60 até agora, têm vindo a redefinir a heterossexualidade e a reprodução, categorias até então tidas como complementares e mutuamente definidas até ao surgimento do contraceptivo feminino. Se uma mulher, que durante os séculos XVIII e XIX era reduzida ao útero e cuja função seria reproduzir, decide abdicar do papel de mãe, que tipo de subjetividade pode ser inventada para esta mesma mulher?

Preciado mostra-se ainda muito interessado noutros fenómenos que desconstroem a maternidade e a figura da mulher, cisgénera ou trans*, assim como a própria humanidade: a engenharia genética, a reprodução médica assistida, a gravidez trans*, as aplicações que monitorizam aspetos diários, como os passos que damos ou as calorias que comemos, os fluidos e aparelhos eletrónicos que funcionam como próteses ao corpo e sem os quais a vida humana se tornaria mais difícil, senão impossível. Estas formas de governar a reprodução e a sua própria história foram negligenciadas pela História da Sexualidade, tratado fundamental escrito por Foucault sobre a ‘invenção’ da hetero e da homossexualidade e que, segundo o filósofo espanhol, necessita de uma revisão ou de uma alternativa, já que não é feminista nem inclui a mulher. Mais ainda, Preciado defende existir um problema moral em ter um escritor no armário a escrever uma história da sexualidade, que recorre à antiguidade clássica para olhar a homossexualidade, ao mesmo tempo que explora o arquivo da história colonial branca sem o abordar diretamente. Como alternativa a esta história falhada, Preciado propõe uma nova história da sexualidade, escrita pelos que batalham para serem reconhecidos como humanos, uma história escrita por corpos que, apesar de orgânicos, não são naturais, mas que compõem um arquivo vivo político que seja a força matriz dessa mesma história.

Já na parte dedicada às perguntas (poucas, dada a hora avançada), Preciado diz identificar-se como quase homem, quase trans*, um ocupante de um corpo em trânsito. Apesar de um tanto utópico, há muito de louvável no trabalho de Preciado e nas suas travessias entre fronteiras de género, que permitem sonhar um futuro que não seja tão binário como este estranho presente em que vivemos hoje.

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