Conhecemos Miguel Araújo como o terá conhecido a maioria: a gabar os maridos das outras. Nada de surpreendente, e daí a surpresa: havia uma quase mundividência no quotidiano quase despercebido. É que a verdade está naquela canção de 2012: o homem perfeito existe, só tem o inconveniente de ter casado com outra. Será esta a tragédia do quotidiano, e assim a universal.
Não encontraremos nas crónicas de Penas de pato (Companhia das Letras, 2018) um Nelson Rodrigues português. Miguel Araújo não parte do banal para explicar o quadro maior, não faz de um traço a infinitude, não concatena os grandes fenómenos com os pequenos. Pelo contrário, parece propositadamente ignorar o quadro maior, escarafunchar a finitude, olvidar os grandes fenómenos para se focar nos menores. Parece pouco, mas haja também quem se detenha nas partículas, porque é afinal delas que o tédio se faz fora dos livros.
A Tinta-da-China publicou em 2017 um colossal romance de Nelson Rodrigues chamado O Casamento. Agudo, fino, incisivo, humorístico, cruel, quase sacana, assim é o autor brasileiro e já assim era conhecido de outras obras. Como referimos, na música, Miguel Araújo olhou para o mesmo casamento e viu o detalhe que fez florescer o óbvio: o casamento perfeito existe, mas nenhum de nós assinou a certidão.
Reiteramos a importância da canção que tornou o autor conhecido em Portugal, porque a fatalidade que apresenta está também nestas crónicas. É logo no início que o autor a atira: “O idílio é onde quer que uma pessoa não esteja.” (p. 27). O sonho das férias esbarra na sua prática: o vento, o estacionamento, os mosquitos, os filhos que reclamam. E contrapõe-se às férias o idílio da “nossa casa, a nossa vida” (p. 27). São as férias, os maridos das outras e as fotografias do Instagram que mostram vidas muito mais excitantes do que as que existem em casa (a instagramização da vida, acrescentamos, em paralelo). Seja o que for, parece que o que está fora de alcance é sempre mais estimulante. Talvez seja por isso que “a tragédia da vida é ter de vivê-la” (p. 58); as idas, as vindas, os contratempos, os estacionamentos; o tédio onde o entusiasmo esbarra, o quotidiano insublimável que faz derrapar a excitação. Estarão aqueles “vikings pelo país fora a saquear estações de serviço, a arranjar porrada nas ruas, a berrar alto” (p. 61) apenas a contrariar esta lentificação, a encontrar na animalidade irracional uma forma de evitar sucumbir ao tédio?
Assim como assim, de tédio em tédio, de pequena derrota em pequena derrota, de Ikea a Leroy Merlin, lá se vai envelhecendo, até ao ponto em que se manda “guarda-chuvas para arranjar” (p. 90). Os sinais de alarme de que o tempo se imiscui nas menores banalidades, engrandecendo-as, faz com que as “boas palmilhas” e o “calçado próprio” para asfalto passem a levantar preocupações.
Ninguém se iluda: a vida de um músico terá mais do que a de um tradutor. Ainda que Miguel Araújo ponha o ónus no trabalho, entusiasmam as noites em que tentou “perceber a lógica dos acordes, [a] memorizar progressões harmónicas, pelos vistos a ganhar mão, [a] ganhar bagagem para o dia em que foi preciso saber alguma coisa” (p.126). Intrigado com a origem das melodias, é por ela que se ocupa “a dar cabeçadas nas paredes à procura de palavras e melodias” (p. 133). Mas continua nessa fatalidade do quotidiano em busca daquele raio de luz que consiga rompê-lo, criar beleza a partir dele.
São 173 páginas onde sobressai a ideia de fatalidade do que é básico. É como o atraso de dez minutos no primeiro dia de escola, aqueles 600 segundos que bastam para que a criança veja, na sua solidão, a harmonização de um “ecossistema perfeitamente estabilizado” (p. 19). É a escola, são as férias, é o Instagram. Fôssemos Nelson Rodrigues e talvez atirássemos um cínico “a vida como ela é”.
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