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Perdemos a doçura e a dança

Começou a chover, estou a ouvir “Raquel”, de Bau. Comecei também a reparar em pormenores no exercício de me tornar mais consciente. Uma decisão que não tomei. Tenho as antenas sempre ligadas, que funcionam como quartzos transparentes, tudo o que vier à rede é peixe. Uma obsessão. Não é tanto sobre os arquétipos das coisas, mas sobre a sua especificidade. A caneca X faz um som ao pousar no mármore X. O som esteve sempre presente. A minha cabeça é que não. E agora passou a estar. Porquê? Obceco-me pelo porquê. Quanto tempo demorou, se demorou, a enxergar a familiaridade daquele som.

Penso em como um pedaço de papel tem apenas o valor que lhe atribuímos e na coragem que seria precisa para o rasgar até à sua extinção. Porque tempo é dinheiro, não é assim que se diz? Nas grutas de Chauvet estão desenhadas leoas a dançar e em Gargas as famosas “mãos em negativo”. A memória de há 36 mil anos é uma imagem, um metaquadro. O capitalismo separa-nos.

A História ensina-nos o tempo como um elástico que estica até romper; o pior é que rompe mesmo. Só os nossos neurónios não esticam, a funcionar como escravos de uma tecnologia cirúrgica (há muito que queria usar esta palavra), a colapsar num pedaço de papel sem valor e num ecrã a negro que devolve a miséria humana.

Uma tempestade pode ser um estado de desespero interno, como o tempo que uma pessoa leva a despedir-se de um emprego – não há uma mãozinha nas costas que diga ainda bem que as noites existem para separar os dias, tal como não existe um antídoto para decidir que tempestade é essa. Por aqui, ainda danço com as leoas de Chauvet ao mesmo tempo que sacudo uma sarna mental, para a frente e para trás.

Perdemos a sensibilidade e com ela a memória de há 36 mil anos. A doçura e a dança.

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Rafaela Jacinto é artista, ativista e queer desobediente do teatro e da escrita. “A música está na minha cabeça” é o seu terceiro livro, depois de “Regime” (2020) e “Fiz uma coisa má” (2021), ambos editados pela Douda Correria. Nasceu em 1994, licenciou-se em Teatro pela Escola Superior de Teatro e Cinema (2016) e é especialista em História e Cultura das Religiões pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa (2019). Estudou ainda Cinema Documental e trabalhou na última década com os realizadores Joaquim Pinto e Nuno Leonel.

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