home LP, MÚSICA PJ Harvey – Olympia, 13/10/2023

PJ Harvey – Olympia, 13/10/2023

PJ Harvey em versão fantasma: é desta forma que a cantora de Dorset surge em palco, com um longo vestido branco, para cantar o mais recente álbum, I Inside the Old Year Dying na íntegra, também ele cheio de fantasmas. O álbum é uma espécie de adaptação de Orlam, um poema épico publicado por Harvey em 2022 e ouve-se num formato circular, de uma ponta à outra, com duas músicas que o abrem e encerram como poderosos marcos, e momentos fragmentados pelo meio. Encantatório, desconcertante, com muita morte e fantasmas, I Inside the Old Year Dying é um ano na vida de uma criança à entrada desse mundo estranho que é a adolescência – “as childhood died the new born year/made The Soldier reappear”. Esta “gurrel yearns yet to un-girl” que se encontra nesse espaço intermédio entre a vida e a morte e a ambiguidade dada pela infância entre ser uma “gawly girl” e um “bogus boy”, percorre as florestas de Dorset acompanhada pelas figuras espectrais de um soldado e de um Deus chamado Wyman-Elvis com quem fala e a quem pede que a tratem com ternura.

Em I Inside the Old Year Dying, a voz de Harvey, como é habitual, oscila entre falsetos fantasmagóricos e apelos cavernosos, adotando o que própria em tempos descreveu como a sua “voz de igreja”, com uma clareza que consegue recuperar na perfeição no formato de concerto. Em I Inside the Old Year Dying, Harvey volta à escala pequena das coisas, depois da incursão pela macro escala das zonas de guerra e conflito de Hope Six Demolition Project: o corpo a envelhecer, árvores que se transforam em cinza, os animais que esperam a morte, as moscas que pousam nos corpos. É neste espaço do corpo que Harvey está em casa, nas músicas que reflectem Dorset, o espaço a que já se tinha dedicado no perfeito White Chalk e no qual também já se debruçava sobre a vida e a morte e o espaço intermédio entre estas, como em “When Under Ether”, e a ausência dos mortos, como a arrepiante “To Talk to You”, na qual fala com uma avó que apenas existe na memória. No mundo de I Inside the Old Year Dying, um espaço a que Harvey chamou de Underwhelem, há crianças, sinos, ovelhas e outros sons pré-gravados que ancoram o álbum no mundo terreno e material; em linha com a tradição da escrita da natureza dos poetas Românticos, Harvey enceta uma caminhada por Dorset através de músicas que parecem ser de um outro tempo mais antigo que nos chega com palavras que não entendemos, no dialeto de Dorset que já quase não se fala, e sons, quer os do mundo natural, quer os de uma complexa paisagem sonora de guitarras e sintetizadores oníricos e fragmentados, que desenham um vislumbre, também ele espectral, de um mundo distante. “Giving edges to the ghosts”, canta Harvey, e é exatamente isso que ela faz.

O concerto começa com “A Prayer at the Gate”: um momento de reza à entrada, do concerto, do álbum, da idade adulta. A jovem que a canta pergunta ao fantasma que a assombra “am I worthy?”, encapsulando o terror de se ser uma criança que se apercebe de que está a crescer. Esta entrada através do portão indica o caminho do concerto: “So look behind, look before/ Life knocking at death’s door (…) So look before, look behind/ Life and death all innertwined”: aqui há morte e vida, presença e ausência, renovação e extinção. Na primeira parte do concerto ouve-se o álbum na integra e é assim que este funciona no seu potencial máximo, exatamente como num livro de poesia em que cada canção (ou poema) ocupa o seu lugar numa narrativa maior. O trabalho de Harvey para o teatro também está presente no aspecto visual e performativo do concerto, que poderia facilmente ser uma peça, assim como na forma como Harvey se move: cada gesto foi ensaiado e cada movimento do corpo complementa o que é dito, com Harvey a demonstrar um domínio total de corpo e palco com gestos precisos e magnéticos.

Em “Autumn Term” voltamos à escola, um lugar pouco confortável para a criança que fala com o fantasma de Elvis e que parte as unhas a brincar na terra: “I ascend, three steps to Hell/ The school bus heaves up the hill”. Quando se ouvem os gritos pré-gravados de crianças, distorcidos e recortados para que pareçam um coro, Harvey dança pelo palco com uma presença única que sempre lá esteve mas que agora é ainda mais expansiva e desinibida, assemelhando-se à liberdade das crianças, não na escola, mas no recreio: ao soar de cada grito, Harvey salta, abre os braços, agita o vestido e contraria a rigidez do mundo dos adultos. Enquanto imagens como “In her satchel, Pepsi fizz/ Peanut-and-banana sandwiches” tornam a experiência da jovem rapariga mais palpável e mais próxima do mundo terreno, a sua obsessão com uma figura espiritual com quem dialoga (“Are you Elvis? Are you God?/ Jesus sent to win my trust?”) fazem com que o mundo de I Inside the Old Year Dying se torne mais estranho e inóspito; enquanto canta para Wyman-Elvis, Harvey estica os braços para fora do palco, baixa o corpo como se procurasse alguém num jogo de escondidas e aponta o olhar para o público e para o horizonte distante, onde talvez o fantasma que procura esteja escondido.

Em Underwhelem não há espaço para crianças solitárias com “her fingernails are ripped/ From hauling clay-filled fists” que brincam com os espectros de “not-friends running nowhere”. A voz de I Inside the Old Year Dying é “a vessel fit for a different wordle” (wordle significa ‘world/mundo’ no dialetco de Dorset, estranhamente semelhante a ‘word’, ‘palavra’). A imagem desta criança solitária lembramo-nos Frank O’Hara e a sua “Autobiographia Literaria”, na qual um jovem rapaz de quem os pássaros e as pessoas fogem brinca sozinho num canto do recreio; mas como a maior parte das crianças solitárias, o rapaz cresce, tornando-se no centro de toda a beleza e, claro, um poeta:

When I was a child
I played by myself in a
corner of the schoolyard
all alone.

I hated dolls and I
hated games, animals were
not friendly and birds
flew away.

If anyone was looking
for me I hid behind a
tree and cried out “I am
an orphan.”

And here I am, the
center of all beauty!
writing these poems!
Imagine! 

Se a linguagem de I Inside the Old Year Dying não nos tivesse convencido de que estamos num mundo povoado de fantasmas e sombras (“Chalky children on the steep/ Baskets full of shadows”), “All Souls” torna, paradoxalmente, a espectralidade deste mundo sombrio mais palpável. Enquanto conta os locais onde um fantasma-soldado sangrou, uma luz ilumina cada um dos músicos que partilham o palco com Harvey, assim como as cadeiras vazias colocadas no palco e onde Harvey se senta, em certas alturas, para cantar, reforçando o aspecto teatral do concerto. Corpos presentes e ausentes são iluminados pela mesma luz e, quando a luz recai sobre uma cadeira vazia, a ausência torna-se mais assombrosa. “Wyman-Elvis disappears”: até Deus parece abandonar a rapariga. Mas é a rapariga que abandona os espíritos religiosos, à medida que deixa a infância para trás e o seu “eu-criança” morre dentro de si – “I Inside de Old I Dying” – encontrando na natureza e nos fantasmas das crianças de giz a companhia e liberdade (a aliteração de “Femboys in the forest find/ Figs of foul freedom” é uma das muitas provas do domínio de Harvey sobre a linguagem poética):

Slip from my childhood skin, I sing
I’m singing through the forest
I hover in the hallway
Laugh into the leaves

Wyman-Elvis assombra todas as músicas e em “August”, na voz de Ben Whishaw, materializa-se; quando a voz se faz ouvir, Harvey olha para cima, como se assombrada, à procura da sua origem. “August” lembra-nos que apesar da estranheza do seu mundo, Underwhelem é habitado por todos nós, que antes da passagem de um mundo para o outro o desejo universal de se ser amado, assim como o ato de morrer, pouco tem de estranho ou incompreensível:

All of us
Cross o’er t’other side
‘Vore I leave
Someone please
Love me tender
‘Neath the trees

Se a entrada para I Inside the Old Year Dying é um dos momentos mais fortes do álbum, o mesmo se pode dizer d seu fim: “A Noiseless Noise” lembra os trabalhos mais antigos de Harvey na sua complexidade e aspereza sonora e enquadra o álbum numa narrativa circular, encapsulando as temáticas adiantadas noutros momentos do álbum, começando pela intensidade da ausência na sua repetição ritual inicial: “Absence, absence, absence”. Apesar da ordem para que a rapariga agora adulta vá para casa (“Go home now, love/ Leave your wandering”) as moscas que se ouvem no fim da música sugerem um outro retorno: o regresso à terra, onde o ano, e a infância – ou até mesmo a rapariga – jazem.


Harvey sai do palco e a sua banda, composta pelo amigo e colaborador John Parish, o baterista Jean-Marc Butty, e os multi-instumentistas James Johnston e Giovanni Ferrario, tocam “The Colour of the Earth”, dando início à segunda parte do concerto, na qual Harvey relembra alguns dos momentos mais icónicos da sua carreira, começando com referências a terra cor de sangue e a soldados mortos: ainda estamos perto de Underwhelem. Não é apenas em I Inside de Old Year Dying que se olha para a infância e para o passado; também o concerto oferece uma retrospectiva da carreira da própria Harvey. Segue-se “Glorious Land” e “Words that Maketh Murder”, retiradas do manifesto anti-guerra Let England Shake, que, infelizmente, se encontra sempre atual nas suas preocupações: voltam as imagens-fantasma dos soldados de I Inside the Old Year Dying e das moscas que sobrevoam os corpos mortos. Com “Angelene” somos levados ao belíssimo Is This Desire, um dos momentos mais fortes da carreira de Harvey, quando as suas músicas, mesmo que através de personagens como Angelene, Leah ou Catherine, ofereciam um vislumbre íntimo ao universo dos amores perdidos e da experiência feminina. Segue-se “Send His Love to Me”, em que a rigidez calculada e ensaiada de Harvey dá lugar a uma expansão gritante, ao ajoelhar-se, batendo no chão, enquanto pede o amor de um amante que a deixou, um amante fantasma. Em “The Garden” entramos por um outro portão num jardim do Éden onde “there was trouble taking place”, onde dois homens se encontram para um encontro amoroso; os corpos de Harvey e da banda são iluminados por um foco que projeta sombras, como árvores num jardim onde se faz cruising ou a floresta onde uma rapariga perde a fé. O tom do concerto torna-se ainda mais íntimo e minimalista quando Harvey canta e toca sozinha “The Desperate Kingdom of Love”, uma lembrança do poder de Harvey para capturar o mundo interior que se vislumbra de novo em I Inside the Old Year Dying depois do abandono desse universo em Hope Six Demolition Project. “Man-Size” e “Dress” trazem a Harvey dos anos 90 de volta ao palco, a Harvey gender-bender armada com uma guitarra a encabeçar uma banda de homens; os fãs agradecem esta mudança de direção apesar de o poder encantatório de I Inside the Old Year Dying, e as cadeiras do L’Olympia, não nos deixarem dançar. “Down By the Water”, “To Bring You My Love” e “C’mon Billy” confirmam, se é que dúvidas houvesse, que Harvey foi uma das vozes mais relevantes da cena rock dos anos 90, surgindo no meio dos homens do grunge com uma voz e atitude únicas, e que ainda consegue reinventar-se, misturar géneros musicais, compor bandas sonoras e ainda dar forma a mundos ainda por explorar. O concerto termina com “White Chalk”, etérea, assombrosa, fantasmagórica: as crianças de giz desfazem-se nas palmas das mãos que Harvey mostra ao público, com a garantia que seremos assombrados durante muito tempo pela estranheza do mundo de Harvey e pelos fantasmas sonoros que levamos connosco.

Alinhamento

1. Prayer at the Gate
2. Autumn Term
3. Lwonesome Tonight
4. Seem an I
5. The Nether-Edge
6. I Inside the Old Year Dying
7. All Souls
8. A Child’s Question, August
9. I Inside the Old I Dying
10. August
11. A Child’s Question, July
12. A Noiseless Noise
13. The Colour of the Earth
(Band only)
14. The Glorious Land
15. The Words That Maketh Murder
16. Angelene
17. Send His Love to Me
18. The Garden
19. The Desperate Kingdom of Love
20. Man-Size
21. Dress
22. Down by the Water
23. To Bring You My Love
24. C’mon Billy
25. White Chalk

Mais textos sobre Música AQUI

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *