Há quem entenda que Políticas da Inimizade, de Achille Mbembe (Antígona, 1ª Edição, julho de 2017) é, no fundo, o fim de uma trilogia iniciada com Sortir de La Grande Nuit (2010), e continuada com a Crítica da Razão Negra (2014). Se é por demais consabido que o autor, historiador, filósofo, politólogo e professor camaronês de Ciência Política na Universidade de Witwatersand, em Joanesburgo, é uma referência de entre os pensadores contemporâneos no que ao estudos pós-colonialistas diz respeito, a verdade é que o assombro da sua escrita – direta, dura e densa – só pode fazer jus às críticas que recebe.
Políticas da Inimizade não é um livro para se ler descontraidamente na esplanada do café do bairro, ou para ir lendo em tempos mortos ou de espera de algo maior. É um ensaio demasiado sério, perturbador e provocatório para ser lido de ânimo leve. Cada página é um espicaçar de adrenalina ao leitor ocidental, mormente europeu, a quem Morfeu abraçou na teórica (ou retórica) dolce vita das democracias liberais e que por isso mesmo cola a retina a cada página.
Os estudos pós-colonialistas, sobretudo na Europa, habituaram tendencialmente os seus seguidores, investigadores ou simplesmente os leigos interessados na temática, à redutora imagem das epistemologias do sul, sob a poderosa lente do norte. Mbembe não só desconstrói, como destrói essa premissa, aventando natural e inevitavelmente logo no início do seu ensaio que “O objecto deste livro é contribuir, a partir de África (…) para uma crítica do nosso tempo…”.
Assumidamente na esteira de Franz Fanon, em 250 páginas divididas em cinco capítulos Mbembe debruça-se sobre as questões globais contemporâneas, como as migrações, os refugiados e o terrorismo. O próprio conceito de democracia (sempre sendo o objeto referente a democracia liberal ocidental e do norte) seria, em boa verdade, o resultado das práticas colonialistas fundadas sobre os medos da insegurança/insurreição e consequente reação securitária. Em bom rigor, e segundo o autor, o pensamento colonialista foi-se travestindo e adaptando às novas realidades idiossincráticas, criando novas manifestações de um mesmo pressuposto. Assim, as democracias liberais hodiernas estariam na verdade ancoradas numa neo-escravatura e num neo-imperialismo, pondo em causa a continuidade histórica em si mesma. A democracia europeia só existe por força de uma violência colonial. E o facto de perdurar deve-se às novas formas de violência e políticas de inimizade que vão sendo criadas.
Neste livro, o pensamento de Mbembe é avassaladoramente transversal, penetrando profundamente na Ciência Política e bebendo de forma sequiosa da Filosofia, da Antropologia, da Sociologia e das Relações Internacionais. A inimizade e o ódio seriam quase como que traves mestras na política ocidental contemporânea, onde a necessidade de um inimigo, de um alvo a aniquilar fazem depender de si todo o sistema social e político, ou seja, uma mutação do pensamento colonialista. Assim, criando um estado de exceção para combater o inimigo, sacia-se a sempre necessária violência sobre outro, sem a qual a sociedade liberal não subsiste, o que cria uma aparente contradição, na medida em que esta, e em teoria, seria o culminar de um processo onde a igualdade seria uma realidade e a guerra uma miragem. A democracia, para sua própria subsistência, teria então que criar ameaças, justificando assim com a violência a sua própria existência.
Não deixa de ser extremamente curioso e apaixonante o possível e aparente paradoxo de um ensaio verdadeiramente africano e de índole pós-colonialista poder fazer lembrar a teoria da securitização da Escola de Copenhaga de Ole Weaver e Barry Buzan do já extinto Copenhagen Peace Research Institute, com a sua índole assumidamente europeísta, na medida em que esta, na sua teoria da securitização, funda-se num mecanismo de criação de normas legais para viver a exceção, através de um ato de fala, securitizando realidades que até então não mereceriam o estatuto de verdadeiras ameaças existenciais.
Seguindo no ensaio, Mbembe reforça a ideia de que nas democracias liberais há uma tendência para um cada vez maior pendor identitário, o que consequentemente e ao mesmo tempo que agrega uma comunidade, vê como ameaças tudo o que for estranho a ela, procurando ver-se destas expurgadas, criando-se uma analogia com um novo tipo de apartheid. Dando relevo ao conceito de necropolítica, pelo qual a justificação da violência no mundo capitalista teria por base as condições das plantações esclavagistas, e aliando-o ao conceito Foucaultiano de biopoder, Achille Mbembe chega à dicotomia entre a biopolítica (tecnologia de controlo de vida) e a necropolítica (enquanto controlo da morte). Retomando o espectro histórico da escravidão e do racismo, e transpondo-o para a sociedade contemporânea, teríamos o uso das políticas de exceção, manifestação de soberania, como legitimação hodierna daquelas. As modernas guerras seriam então baseadas nesta criação do novo inimigo baseada na lógica do terror, retomando embora de forma diferente, os pressupostos das guerras coloniais para justificar a limitação de direitos, liberdades e garantias.
Finalmente, o autor faz uma análise, a partir da ótica do pensamento africano, à própria categoria de negro e o que seria um humanismo que partisse da história do pensamento africano.
Políticas da Inimizade, quer se concorde com as ideias do autor ou não, é um potente instrumento de agitação mental, porquanto tem a inegável vantagem de ser uma visão sobre as democracias liberais que não tem nelas a sua origem, bem como as coloca sob um jugo histórico que muitas vezes ou se olvida, ou não se quer ter presente.
Texto escrito por Paulo Faustino, seguindo o novo acordo ortográfico.
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